terça-feira, novembro 23, 2004

Contos do Exílio - O Regresso, Parte II: Encontro

Aquela floresta era-lhe tão familiar como se parte integrante de si mesmo, um mero prolongamento do seu ser. Cada galho, cada raíz eram-lhe tão familiares como se fossem os seus dedos e as suas mãos. Conhecia cada árvore como os seus próprios braços, o ribeiro saudava-o todas as manhãs e as grutas abriam-se ao pôr-do-sol, para que nelas repousasse em paz. Apesar de tudo isso, neste momento caminhava hesitante!...

Era um sentimento novo e estranho. Ele, que se tornara parte das lendas sobre seres fantásticos e tenebrosos, caminhava hesitante. Ele que combatera alcateias de lobos e era visto como devorador de Homem e Animal, estava agora no lugar da presa, caminhando hesitante e receoso, rumo a uma chama que ardia tão longe e no entanto tão perto. Cada vez mais perto...

Subitamente uma forte lufada de ar da noite tapou-lhe a vista com os seus próprios cabelos desgrenhados. O seu instinto de caçador fê-lo correr para a sua esquerda e agachar-se na erva alta que aí brotava. Havia decidido avançar sobre a fogueira pelo lado contrário àquele em que antes de encontrara, de modo a evitar que o vento levasse o seu cheiro até quem quer que estivesse junto da fogueira. Colado ao chão começou então a rastejar. Quando finalmente se encontrava ao alcance da vista de quem quer que estivesse junto da fogueira, reparou que apenas um velho se sentava, de costas voltadas para ele, junto ao lume onde assava um pequeno animal. Atrás dele, pousados no chão, repousavam dois cajados e ao seu lado havia uma pequena trouxa, que mais não parecia do que um amontoado de trapos...

A Fome!... Esse sentimento escondido, esse desejo de pão, essa vontade de pegar numa vara, essa sensação que lhe acelera a pulsação, lhe retesa os músculos, que o isola de todo o mundo, menos daquele que os seus olhos conseguem captar. Já há muitas Viagens que não a sentia vibrar em si, mas a vista dos cajados acordou esse sentimento escondido nos recantos do seu ser onde a humanidade hibernava.

Imagens de uma vara partida, um grupo com tochas, um guerreiro vestido de verde, memórias passadas e imagens futuras, tudo lhe atravessava a mente enquanto contemplava o velho, que se encontrava agora de pé e a olhar atentamente para o local em que se encontrava.

-Levanta-te ó Exilado! O teu futuro começa hoje e não lhe poderás escapar! - a voz do velho ressoou pelas copas das árvores. Era uma voz cavernosa e ninguém diria que um velho de aspecto tão frágil seria capaz de fazer vibrar o meio em seu redor daquela forma. Aquelas palavras gelaram-lhe o sangue. Gelava-o não tanto a forma como haviam sido ditas, mas sim pelo que diziam e pelo que significavam. Aquele velho sabia onde ele estava! O velho revelara saber ainda algo mais, revelara que a sua humanidade perdida, não lhe era de todo desconhecida!
(continua)

quarta-feira, novembro 17, 2004

Criança

Sonho com naves flamejantes
extraterrestres e humanos
Sonho com prados verdejantes
flores e nuvens num céu azul
Sonho com histórias de encantar
princesas e dragões para escravizar
Sonho com lutas terriveis
em que saio sempre vitorioso
Sonho com corridas
em que sou sempre o mais rápido

Sonho, sonho, sonho... em ser criança outra vez e não me preocupar com o mundo

segunda-feira, novembro 15, 2004

“E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço”
Jorge de Sena

Encontrar-nos-emos noutros lugares,
Estranhos e novos
Plenos de sentido
Num outro tempo,
Em que o momento é o certo
À espera de ser vivido

Encontrar-nos-emos noutros lugares,
Em que o hoje é diferente
E as distâncias são as mesmas
E a comunhão se faz sentir
E o olhar finalmente
se encontra

Encontrar-nos-emos noutros lugares
Já que separados,
Só resta a esperança
Que esta rotina rompida
Toque o espírito
E nos faça crer

Encontrar-nos-emos noutros lugares
Convictos que o destino
Que actuou assim,
Firme no seu propósito,
O fez porque hoje não teria sentido
O que amanhã fará

Encontrar-nos-emos...

segunda-feira, novembro 08, 2004

Contos do Exílio - O Regresso, Parte I: Despertar

A noite cai, escura e pesada como se anunciasse a todos os seres vivos a total ausência de amanhã.
A noite cai e acorda nele essa sede adormecida. Sentado ali na clareira, sem a presença da lua, sente despertar em si toda uma fúria acumulada ao longo dos tempos. Na sua mente desfilam imagens que não conhece, imagens de uma falésia, imagens de pessoas, imagens todas elas de uma outra vida passada.
"Abre os olhos e contempla o Céu!"
Uma voz que ressoa dentro da sua cabeça. Fumo! O cheiro áspero de pinho queimado invade-lhe as narinas e o crepitar de uma fogueira ao longe, ressoa através das árvores. Sente perigo, um perigo que se aproxima!... Reside já há muito tempo deste lado da montanha, tempo suficiente para saber que ninguém se aventura para este lado da montanha com o ânimo tão leve que faça uma fogueira, tão leve que revele a sua presença nas imediações. O tempo ensinou-lhe que perseguir os incautos era a melhor forma de adquirir roupas e provisões, pois mais cedo ou mais tarde a floresta acabaria por cobrar-lhes algo mais do que um mero pagamento pela travessia nunca terminada. A fogueira revelava assim ou alguém muito confiante, um agressor, ou mais um visitante incauto, uma vítima.
A Sede voltou, secando-lhe a garganta! Sentia esse apelo, esse aperto, essa vontade imensa de falar com alguém, não um animal, não o ribeiro, não a Floresta, mas alguém, um semelhante. Sentia esse aperto de uma forma nunca antes sentida e o cheiro a pinho queimado intensificava-o a cada instante.
Levantou-se, sem se aperceber, e começou a caminhar desse fogacho intermitente do outro lado da grande clareira onde dormia já há três noites. Caminhava hesitantemente, sem se dar conta que cada passo representava um regresso à humanidade perdida, o despertar para uma nova vida.