segunda-feira, novembro 28, 2011

A Cidade

Não vai ser preciso calcorrear prolongadamente os passeios

(Tão diferentes dos meus, tão cinzentos, sujos, com tantos restos das noites que por eles passaram que se poderia escrever um romance por metro quadrado. Toda uma colecção onde não seria preciso repetir fórmulas nem personagens, apesar de estes poderem fazer visitas esporádicas noutros contos.)

tão desacertados que se diria que pulsam, agora subindo, agora descendo, consoante a inclinação do bloco de cimento, para encontrar o que procuro.

Tudo organizado, ali estão elas, ao longo das perpendiculares em grupos de três ou quatro, mas pouco mais. Um olhar em redor e reparo que alguns carros têm o condutor, ou, distanciados, homens a fumarem languidamente como se não fosse nada com eles.

(É assim que se arrumam em qualquer cidade: junto ao coração da mesma, onde o sangue novo chega quentinho, pronto a ser chupado.)

Deixei para trás o quarteirão dos hotéis, pensando que aqueles halls iluminados, de mármores reluzentes não são para mim, são para os que procuram em cada cidade o lado luminoso e vistoso, o vestido de gala com que ela se adorna para seduzir o visitante.

“Need some company for the night?”

(Oh baby if you only knew!)

Eis-me chegado ao que procurava. Olho-a. Não é o melhor exemplar que podia encontrar. Tem o ar de uma veterana da zona,

(Ou pelo menos a indumentária e a postura.)

o que me leva a concluir que a busca terminou, porque é mesmo isto que preciso. Não me preocupo com o aspecto físico. Podia arranjar melhor, mas também já havia tido pior, por um preço bem mais caro.

(Quando paramos para pensar, todos os engates são no fundo uma ida às putas. Tudo se resume a formas de pagamento: para umas é dinheiro vivo, para outras géneros.)

Respondo-lhe que cheguei agora, ela pensa ser uma desculpa para a evitar e começa a urdir os feitiços com que os incautos se deixam apanhar. Não sou incauto, mas deixo-me ir na mesma. Eu quero ir, ser levado, caçado e abusado!

(Pela conversa percebo que é de facto uma veterana. Nenhuma novata me diria as coisas como ela, nenhuma recém-chegada deixaria um veterano de ruas e vielas ansioso da maneira que fiquei.)

Ela perguntou em que hotel estava e eu respondi-lhe que ainda nenhum. Ela apontou então para uma janela com um letreiro intermitente ao fundo da rua. O meu palácio aguardava-me!

Não adianta estar a relatar os pormenores da noite. O sol vai alto

(Ou deveria ir, pelas horas, porque nesta cidade o sol dura uns dias no Verão. Não é Verão. O céu é cinzento, sempre cinza, ora escuro, ora claro, mas sempre um deprimente tom cinza.)

e estou numa esplanada embrulhado numa manta. Vejo o tráfego das bicicletas, que partilham o asfalto com carros e autocarros, e as ruas do centro com os peões. Vejo gente. Não vejo tipos de pessoas, vejo gente. Vejo engravatados, vejo atletas, vejo raparigas e rapazes, no fundo todo um povo. Levo o sumo de laranja aos lábios

(Está tão aguado que poderia confundi-lo com uma qualquer espelunca de turistas na minha cidade.)

para molhar a garganta. Tiro o panfleto do turismo do bolso de dentro do casaco e começo a ver o que a cidade tem para me oferecer. A verdade é que não queria ser turista, mas aqui é o que sou.

(Será alguém outra coisa quando chega a um sítio novo?)

Primeiro tenho de conhecer ruas. Até agora o que vi foi prédios de três ou quatro andares, todos num tijolo vermelho, com escadinhas à porta. Tudo construções, no mínimo, centenárias. Ou, pelo menos, de fachadas centenárias e reconstruídas no interior. Ruas largas, onde caberiam dois carros, fechadas ao trânsito para liberdade dos peões e bicicletas. E gente alta de cabelo claro, corpos magros. Para mim é fácil sobressair nesta multidão.

Um raio de sol fura as nuvens e toca-me na cara. Surpreendentemente esse toque aquece-me. Por entre um golo e outro tenho estado a tentar decifrar o que estou aqui a fazer. É verdade que ainda não passaram três dias desde que vendi a casa. Nessa noite fui ao site da companhia aérea e escolhi a promoção para Cidade, bilhete ida e volta, preço reduzido. Amanhã por esta hora estarei a perder o vôo de regresso e ainda não sei porquê. Na pensão já acertei uma renda. Consegui um negócio porreiro e consigo duplicar a estadia. Dois meses. É esse o tempo que tenho. Posso bem aproveitar o dia nesta esplanada, a ler um livro.

terça-feira, novembro 22, 2011

A Cidade

 Que saída triunfante para um átrio cheio de desconhecidos que esboçam ares de felicidade quando me vêem. Ares que desaparecem assim que me não reconhecem e os seus olhares se focam na cara que vem atrás de mim.

 Comboios para baixo, metro para cima e autocarros nas portas laterais do mesmo nível. Não sei para onde ir. Penso que com o dinheiro na conta posso dormir num hotel limpinho uma semana, ou numa pensão manhosa durante um mês. Nas informações para turistas devem ter recomendações. Enquanto caminho interrogo-me se terei o ar aparvalhado e perdido do turista típico; olhos esbugalhados 

(Como se por estarem mais abertos conseguissem captar mais informação.)

e passinhos curtinhos.

(Com medo de pisar uma mina certamente.)

 “Em que posso ajudar?” perguntam-me num inglês limpíssimo e sem sotaque.

(Há dois mil anos seria um latim do mais alto calibre, há quinhentos castelhano, há cinquenta se calhar esperavam que eu perguntasse em francês… Vou responder em francês!)

 “Un bonne hotel, s’il vou plait.” Digo com a absoluta convicção de que alguma coisa está errada na frase. “Bien sure” e tira um mapa onde escrevinha umas coisas. Começa a falar num francês com sotaque, mas não é por isso que a conversa me passa ao lado, o francês é que é demasiado avançado para mim e perco-me a acenar que sim e a murmurar aceitação.

 (Daqui a cinquenta anos que outra língua falarão? E daqui a quinhentos? Português? Chinês? Esperanto? Seremos parte dessa aldeia-global onde todas as ruas falam a mesma língua, ou continuaremos na herdade rural onde o estábulo muge, o senhor fala com o fazendeiro num dialecto erudito que é posteriormente transmitido brejeiramente à esposa que ouve o cacarejar das galinhas, enquanto pensa “o meu homem não se devia meter no que não percebe” e, lá longe, um pato grasna, os burros zurram e o vento assobia por entre as copas das árvores, enquanto na seara um lamento…)

 Olho as cruzes no mapa, agradeço, e vou para o comboio.

 Uma certeza do comboio é a estação central. Toda a cidade tem a sua Cidade-Central, onde o comboio se cruza com o autocarro, os táxis, o posto de correios, o turista que chega e o turista que está de partida,

 (Como metáfora da ignorância do que será e da memória do que foi.)

e parece, com esse burburinho, que é em redor deste edifício, centenário, mas com laivos de contemporâneo introduzidos aquando das últimas obras de requalificação, que a cidade se ergueu, como que a facilitar as partidas e as chegadas.

 (Teremos então daqui a uns centénios por coração das cidades o aeroporto Cidade-Aeroporto? Ou será que os aeroportos assumirão como sua a designação de Cidade-Central?)

 A viagem para Cidade-Central decorre pelo meio de túneis, verde e braços de água, túneis, fábricas e algumas estações e apeadeiros, fábricas e estações fora de serviço, vidros partidos e Cidade-Central. Eis-me chegado ao coração da fera, onde o sangue circula depressa e se distribui pelas várias artérias e capilares, onde desembocam veias de diesel e táxis, o sangue novo chega para lhes dar vida, o velho parte com a melancolia

 (Será isso? Não haverá algo de cansaço e desilusão? Quantos dos que vão irão também amanhã, porque entretanto regressaram? Estarei entre quais deles?)

de tempos passados em tecidos de profundidade variável, quantos deixaram carteira e valores, importante o primeiro, acessório o segundo.

 Com este pensamento lembrei-me da questão da estadia. Afinal que melhor forma de mergulhar na profundidade dos tecidos da cidade do que misturar-me com o produto que todo o seu metabolismo, e que melhor sítio para encontrar esses metabolitos do que numa pensão rasca? Dobro o guia turístico; aquilo que procuro não vem lá, nunca vem, não importa a cidade, não importa o país, o produto final daquilo que somos não está no guia turístico, preciso de alguém que me saiba orientar para as minhas reais necessidades. Com a mala preta na mão desço as escadas no lado poente e dirijo-me à zona ocidental à procura de uma prostituta!

segunda-feira, novembro 14, 2011

A Cidade

 O avião aterrou já há uma hora

 (Céus como o tempo voa!)

mas da nova cidade ainda não vi mais do que pequenas casas em miniatura quando o avião curvou acentuadamente, tudo lá ao longe, enquadrado por campos de verde e encimado por nuvens em diversos tons de cinza,

 (Será que o sol já brilha?)

como que a pressionar-me para fugir…

 Uma hora à espera da mala, uma pequena mala preta que por não caber num gradeamento me obrigaram a despachar no porão. Pequena mala que só traz umas quantas mudas de roupa,

 (O suficiente para uma semana ou duas.)

as necessárias para me encontrar. É isso! Encontrar-me.

 Procuro-me nesta cidade, como me procuraria noutra qualquer que não fosse minha. Na minha conheço-lhe as curvas, as colinas, as gentes e os carros.

 “Bom dia vizinho! Tudo bem?”

 Tudo dito à pressa e sem esperar resposta.

 (Não é retórica porque a resposta não é imediata. As coisas até podem estar mal, eu é que não quero saber.)

 “Vai-se indo…”

 (Que tanto quer dizer que está tudo bem, como podia estar melhor, ou simplesmente que não se está morto.)

 Um “O cabrão do Clio está a ocupar dois lugares” de raiva dirigida ao carro que não tem vontade própria.

 Nesta cidade não há o monótono afogamento da rotina nem sou consumido pelo tédio.

 “Estás morto! Ou se não morreste, parece; não reages, não sais de casa, não…” Não interessa pois não? A verdade é que eu não saio

 (ou deveria dizer saía?)

mas tu saíste e contigo tudo o que me prendia à casa. Que vendi quando saíste! Vendi e comprei a passagem, um bilhete de ida-e-volta que espero sem regresso breve, porque espero há uma hora pela mala preta, mas à minha volta respira-se outro ar. Olho e vejo aceitação, despreocupação. Olho e vejo que só eu estou impaciente e enervado com a situação. Na minha cidade, apesar de esperas constantes, medidas em blocos de sessenta minutos

 (Porque razão terei pensado em minutos? Sessenta são uma hora. Será que é a necessidade de fazer parecer mais? Porque não em segundos então? Três mil e seiscentos. Sessenta minutos vezes sessenta segundos e o tempo seria já o de uma espera eterna.)

intermináveis na sua morosidade, não se desenvolveu a refinada calma e tranquilidade na espera. Aqui, pelo que experimentei até agora, também se espera horas, mas espera-se com um ar de aceitação triunfante e não derrotado desespero. Aqui quando se espera o tempo não é perdido mas ganho. Quando eles esperam põe a cara de quem vê os ponteiros a retroceder três mil e seiscentas vezes…

 (E eis que a passadeira se começa a mexer e vejo que a minha mala é a segunda a sair das entranhas do aeroporto.)

(continua)

Texto publicado originalmente na Antologia BBdE