quarta-feira, junho 23, 2010

Um Charuto

No meu bairro as casas são todas iguais. Todas têm dois andares, as mesmas cores na fachada e o mesmo telhado alto. Debaixo deste telhado surge o primeiro traço de originalidade e individualidade. Escondida. Debaixo destes telhados altos estão em algumas casa quartos, noutras arrecadações e noutras, como na da minha amiga Anabela, houve quem montasse um salão de jogos.

Não um salão de jogos na acepção de um local onde se paga para entrar e onde se gasta dinheiro. O que se passou foi que o pai dela queria um espaço para meter uma mesa de bilhar e uns computadores para jogar na net. Parece que umas máquinas todas artilhadas, mas como posso saber, estão todos bloqueados! Agora a mesa de bilhar não e ao final da tarde não é raro irmos para lá jogar.

Esta tarde estava-lhe a dar nas horas e por muitos jogos que fizéssemos, em menos de um quarto de hora já tinham acabado, com o resultado a ser invariavelmente uma vitória minha. Compreensivelmente a vontade de jogar não era muita e a Anabela decidiu que queria antes ir ver montras ao centro. Quando estávamos a sair do pequeno jardim
(talvez canteiro seja o termo mais correcto, mas a mãe dela insiste tanto em chamar-lhe jardim, que toda a gente acaba por alinhar com ela; quem disse que uma mentira repetida não se torna verdade?)
reparámos numa situação estranha: um homem, de calções e t-shirt, estava na varanda a fumar.

(Esqueci-me de dizer que todo o bairro está organizado por pracetas, com a frente das casas orientada para o centro e um acesso a uma rua principal no topo norte da rua. Todas as casas têm um acesso à porta ladeado por canteiros, uma garagem mesmo ao lado da porta e, a cobrir ambas as ombreiras, um varandim com não mais do que um metro de largura, mas onde alguns moradores ainda conseguiam colocar alguma verdura. A decoração das varandas é o segundo, e penúltimo, traço de individualidade.)

O estranho na situação é o haver alguém a olhar o quadrado morto em que se torna a praceta a meio da tarde. Aquela cena pareceu-me tão fora do sítio que o que me tomou não foi um sentimento de “é um homem a fumar um charuto”. Não! Naquele momento era mais que isso, era um estranho com um comportamento estranho! Não se pense que o estranho era o fumar, como já referi, o estranho era alguém olhar para a praceta enquanto o fazia, porque era isso mesmo que ele fazia, estava ali, de pé, encostado à ombreira da porta da varanda, um charuto na mão e o olhar vazio. Ou seria um olhar cheio, a tentar captar toda a praceta? Mas que havia na praceta para captar?

“Estás bem?” perguntou-me a Anabela, e só então percebi que estava parada a olhar para a varanda. “Não é nada de tão especial que pares para aí a olhar. Até parece ser já um bocado velho demais para ti!”

“Não é isso! Não achas esquisito o que ele está a fazer?” perguntei-lhe. A resposta veio na forma de uma pergunta e de uma risada e senti-me um bocado aparvalhada por ser confrontada com a naturalidade de acto de se fumar um charuto. “Mas não achas estranho alguém estar a fumá-lo sozinho a olhar para a praceta a meio da tarde? Que é que há aqui para ver?”

“Olha… Se estás tão cheia de dúvidas porque não vais lá perguntar?”

(continua)