Uma névoa fria banhava aquela manhã. No alto do monte, cuja relva ia perdendo os tons rubros da batalha que aí se desenrolara, encontraram-se finalmente, após todos estes anos. Olharam-se olhos nos olhos e o que viram nos do outro foi uma escuridão imensa. Olharam-se como os irmãos que eram. Como irmãos que não se falavam havia já muito tempo, demasiado tempo... Tempo em que haviam deixado que os seus exércitos se travassem de razões, um pouco por toda a parte, por um motivo que já nem era claro nem para um, nem para o outro. Ao seu redor os corvos e as aves de rapina banqueteavam-se! Parecia impossível, mas apenas restavam dois. Naquele campo, onde durante uma semana homens lutaram, homens morreram, homens entraram para a história, apenas dois restavam, eles os dois, que haviam começado aquela guerra, seriam também quem acabaria finalmente com ela.
Soprou um vento frio que arrastou os largos cabelos que ambos possuiam. Não diziam nada, olhavam-se. Não sabiam bem o que procurar na cara do outro. Podia ser que se lessem, podia ser que travassem um duelo mental, podia ser que procurassem perdão.
Não há perdão, não houve, nem nunca haverá à face da Terra quem possa perdoar os dois irmãos. Só Deus, se algum dia diante d’Ele se encontrarem, os poderá perdoar. As histórias que se contam é que o motivo pelo qual a guerra durou tanto tempo é porque o próprio Diabo os expulsou do Inferno. Ninguém diria no entanto que se enfrentavam os dois seres mais malévolos que já caminharam à face da Terra. Ambos pareciam jovens, mas cansados. Via-se que o peso de muitas batalhas lhes dobrava as costas. Via-se no seu ar muitas almas que clamavam por vingança.
Um clamor surgiu então nesse monte. Nos campos em redor, os mortos pareceram levantar-se, as suas armaduras quebradas a tilintar, os seus ossos pendurados e inertes mas as suas almas a clamarem por paz. Ambos os irmão souberam o que os mortos pediam e ambos viram aí o prenúncio do que aconteceria... perceberam então que, todos estes anos, mais não fizeram que adiar o inevitável. Teriam de ser eles a acabar com o derramamento de sangue. A altura de mandar outros para a chacina havia terminado...
Começou o da armadura negra por retirar a mesma. Ficou em tronco nú, segurando apenas uma espada larga, feita mais para ser usada como moca e como espeto do que objecto de corte. O da armadura branca pareceu anuir ao desafio e retirou a sua armadura e ficou a segurar uma espada em tudo idêntica à do seu irmão. Olharam-se mais uma vez longamente. Não havia entre eles receio, havia sim algo que os impedia de se lançarem um contra o outro. Finalmente, depois de tantos rios de sangue derramados perceberam que matar só era fácil quando não é o nosso sangue o derramado. Avançou então um, difícil dizer qual no meio da neblina e sem as armaduras que os identificavam, e o outro respondeu com um passo igualmente seguro em frente.
O vento era agora mais forte e trazia as vozes dos milhares de mortos que clamavam por vingança, já nenhum defendia um dos irmão, mas sim a morte de ambos! Ambos sentiam um frio maior do que aquele que lhes arrepiava a pele. Naquele momento era algo maior que eles que ali estava em questão e cada um lutava contra os milhares de mortos que causara no exército do outro. Apenas eles haviam sobrevivido, não porque fossem generais que não lutam, isso não, ambos investiam a pé, na frente dos seus exércitos, não, a explicação era outra... Ambos haviam sido treinados pelo mesmo mestre, o maior general do seu tempo e ambos haviam sido o seu maior discípulo. Dominavam todas as armas conhecidas como nenhum homem do seu tempo, mas aquelas espadas eram a fonte de toda a discórdia. Ambas possuiam poderes mágicos, que faziam do seu portador invencível. Ciente de que tal poder nas mãos de um só homem seria perigoso para todos os outros, o general havia oferecido uma a cada um dos seus discípulos. Não tardou que cada um desejasse para si a espada do outro e daí até à Guerra dos Irmãos foi um passo.
Muitos anos haviam passado e ambos haviam liderado os seus exércitos, recrutados com promessas de glória e fortuna, mas nunca revelando o poder das espadas aos seus soldados ou generais, muitas gerações de homens passaram e a Guerra dos Irmãos tornou-se na Guerra Eterna, travada entre exércitos maiores do que a imaginação consegue visualizar e sempre com duas figuras eternas a liderar. Dizia-se que era uma luta entre o Bem e o Mal, com o Mal a ser sempre o irmão opositor. Havia lendas construídas em redor de batalhas lendárias daquela guerra, mas aquela, no Monte Nodegamra seria a última, as espadas invencíveis conheceriam hoje a derrota.
À medida que se digladiavam o cansaço apoderava-se de ambos por igual medida. A cada um a espada ia sugando o que lhe restava de vida. Continuaram naquela dança macabra por dias e dias até que finalmente e em simultâneo, tolhidos pelo cansaço, tiveram o mesmo movimento em falso, rapidamente aproveitado pelo irmão para enterrar a espada no seu coração...