sexta-feira, agosto 13, 2010

O Funeral

O dia estava cinzento. Mais do que as nuvens no céu, a disposição dos presentes contribuía para tal. Nenhum deles estava propriamente surpreendido, mas o longo definhar em nada ajudou a apaziguar a dor que cada um sentia naquele momento.

Havia começado uns anos largos antes. No velório alguém lembrara como a transportavam ao colo, como a acarinhavam, a mostravam a desconhecidos. Como em todas as famílias a educação dos filhos também neles provocou discussões, algumas em tom bem amargo, outras bem regadas, mas indiferente a todas estas discussões a menina ia-se fazendo rapariga. Até que um dia sentiu necessidade de se expandir.

Andou um bocado intermitente. Experimentou várias roupas, vários estilos. Nunca se deu por satisfeita, chamou a atenção de gentes várias e não se apercebeu que crescia para lá do controlo da família. Não se apercebia que era ela própria o cimento que juntava a família, mas qual o adolescente que tem essa noção? Como todos os adolescentes fez-se adulta e tentou então aproximar-se da família. Ainda os juntou mas aos poucos sentia a vida a fugir-lhe. Foi uma daquelas doenças que surgem devagarinho, os sintomas tão camuflados que nem nos apercebemos que são sinal de algo grave. As reuniões de família traziam sempre novos elementos, mas ela saía de lá esgotada. Cheia de vitalidade, mas esgotada e isso perturbava-a. Nos dias seguintes queria fazer coisas, mas não encontrava eco.

Foi então que percebeu que os anos em que crescia a família tornava-se várias famílias. Não era mais o garante de união de várias pessoas, antes motivo para as várias famílias se verem de quando em quando e recordarem a sua pequena menina.

Com o afastamento da família ela descobriu o que era a solidão. Não de uma vez, aos poucos, à medida que o bicho lhe comia as entranhas e as pessoas se afastavam, não de nojo, desinteressadas, sem vontade de ajudar uma doente que cambaleava, mas não parecia doente. Havia dias em que acordava e o sol parecia brilhar com mais intensidade e nesses dias punha um sorriso bonito, num desses dias ousou até fumar, algo que não fazia desde... Não se lembrava!

Na verdade não acabou o cigarro. A meio sentiu-se melhor, muito melhor, e já só viu a sua vizinha de mãos na cabeça, quando estava de pé ao lado dela, a olhar o seu corpo caído no chão.

Mais uma vez tinha conseguido juntar a família. Sabia que era a última vez. Sabia-o e percebia-o agora finalmente. Tudo o que começa apenas tem por certo o fim. Queria aproveitar aqueles instantes ali no meio deles, ouvir as memórias pela última vez, antes de se desfazer em cinzas e se espalhar pelos cantos da memória colectiva daqueles que um dias foram a sua família.