quarta-feira, agosto 13, 2014

Aranha

Apressa-se numa refeição estonteante
numa vereda amarfanhada
eléctrica e mortífera;
vibram-lhe os tentáculos musculados
para se extasiar cegamente.
Devora a vítima nos imensos cantos do enigma,
numa ressequida viagem paupérrima,
aglutina, revertendo-se simulada.
Vertiginoso e efémero momento...
são escassos segundos no compasso cru,
como um bisturi...golpeia com precisão,
a pele nua e sonâmbula.
Tombam as vítimas inertes na calçada,
apenas existem as luzes toscas,
dos imensos e solitários candeeiros de ferro;
escurecem os gritos roucos
entre os espaços negros de sangue,
que restam dos poucos minutos de vida...

Artur Patrício

Silencio

Silencio 
aproveito o silencio da noite
quebrado por musica 
produzida por uma agulha 
riscando um prato de vinil

silencio da noite 
que faz pensar em momentos
passados contigo 
momentos que poderíamos ter passado 

aproveito o silencio da noite
para te esquecer
para me reintegrar
para me reagrupar
para me reconstruir
para te colocar no álbum de recordações
que tu teimas em não ficar
com a tua constante presença 

este silencio nunca mais será o mesmo 
será sempre mais silencioso
será sempre mais solitário
será sempre mais triste

até esquecer e perder te na memoria

sinto me muito mais calmo sem ti 
muito mais solitário

e a agulha risca a ultima linha do prato de vinil
e o silencio volta a ser mais profundo 
depois de ti

Manuel Garcia

terça-feira, agosto 12, 2014

The Bad Wolf...



A meu lado caminha um lobo,
que nunca se perde e nunca se cansa.
Sempre à distância de um olhar o encontro, esperando por mim.
A beleza dos seus olhos e a prata do seu pelo, escondem a sua verdadeira natureza,
pois o meu lobo é feito de paixão, de raiva e de medo.
É feito de uma fome infinita,
que nem mil vidas conseguiriam saciar.

Houve tempos em que não resisti em tocar-lhe,
em mergulhar no seu manto de seda  e sentir o seu calor.
Como qualquer animal selvagem, rasgou-me a carne,
dilacerou-me o peito, deixando-me à beira da morte.
E eu aprendi. Aprendi a caminhar a seu lado,
Contemplando-o em toda a sua infinita beleza, sem o deixar aproximar.

Mesmo no mais escuro breu, vejo o brilho dos seus olhos, o seu apelo silencioso,
E sei: caminharemos sempre lado a lado, eu e o meu lobo,
e só depende de mim, mantê-lo afastado.

segunda-feira, agosto 11, 2014

Segundos

A chuva intensa ocultava-me por completo o caminho, restava-me apenas esperar por um milagre ou recolher-me num barracão velho que vira metros antes. O cenário era fantasmagórico, esperava-me um caminho às escuras delimitando o abismo...Parecia um filme a preto e branco. Na minha mente, além da pele encharcada, recordava os velhos filmes monocromáticos; era assim que eu estava, rodeado de incertezas e todas em tons cinza. Pesadelo! Tentava respirar conscientemente, quase sincronizadamente ao som das gotas pesadas que gritavam assim que embatiam no solo. A chuva intensa parecia não querer abrandar.
Tinha a certeza que ninguém vira o meu carro na ravina, nem sabia que ainda estava pendurado pela raiz daquela árvore velha. Tinha tido muita sorte apesar da infelicidade do acidente. Confesso. Apenas isso me mantinha equilibrado: pensar que não tinha que ser, não era esta a minha hora. Existe algo mais a fazer aqui neste mundo dos homens...
Finalmente tinha chegado ao barracão velho, parecia-me intacto embora muito envelhecido. Abri a suposta porta e senti cada gota de água na minha  pele a gelar, instantaneamente fiquei petrificado que o meu coração quase que parou. Fiquei ali, imóvel ao ver a imagem que a luz da Lua me mostrava, um texto, escrito toscamente num vermelho vivo que dizia: Foge!!!

segunda-feira, agosto 04, 2014

Descoberta

- A idade do armário é possivelmente o período mais entrópico do esquentamento da cafeteira. A conquista dos limites emocionais e físicos, a descoberta da identidade, num conflito constante entre as duas fases. Para crescer é preciso gerir e regular a combustão para que não se entorne demasiada água e se apague o lume da vida prematuramente... Os limites parecem excentricidades aos olhos dos adultos mas eles são os mais genuínos! - respondeu Aurora enquanto ajudava a irmã a desligar a cafeteira nervosa.
- Obrigado irmã por adoçares o meu intelecto com o chá da vida.
- De nada. Curiosidade... Estás na idade tardia do armário? A ver pela violência da fervedura deves ter regressado à puberdade... Quem te esquenta a cafeteira?

Um silêncio pautou enquanto oxidavam as folhas aromáticas. Lúcia ergueu os olhos na direção da irmã - uma lágrima solitária e salgada caía na sua chávena criando um turbilhão de amargura.

- Encontrei o fio condutor da minha vida à mesma velocidade que o perdi. Esta palpitação que alimenta o nervosismo da minha existência é único... Errei ao tê-lo deixado cair com uma  leveza eléctrica!
- De quem falas tu? - perguntou Aurora completamente surpresa com a desinibição emocional da irmã.
- Falo da minha luz, do meu calor, do meu odor, do meu sabor... Que a minha estúpida razão deixou para trás. A combinação de metade da minha essência, ele, Pedro! 
A chávena tornará-se agora um depósito saturado de testemunhos. Aurora, emparelha suas mãos nas da irmã e com ternura e sabedoria, tranquiliza-a.
- Nem tudo está perdido. Ficaste com algum contacto? 
- Não! Saiu abruptamente.
- Assim é mais difícil mas... - o toque do telefone, electric eye, de Judas Priest, mais uma das partidas de Marco, interrompe o raciocínio de Aurora - é o teu sobrinho, o que terá feito para ligar a esta hora?

"Sim filho?! Que se passa? Encontraste quem? Hospital? A tua tia está aqui... Como disseste que ele se chamava? Está em que hospital? São José... mas está bem? Achas que foram eles? Calma, vá até logo filho. Txau!"


Lúcia petrificou o seu olhar no horizonte do corredor enquanto Aurora lhe batia na face.

- Lu, vá! Não entres em choque, explico já o que acabaste de ouvir - nisto Lúcia regressa à realidade fixando o olhar no leito ternurento e sábio de sua irmã - Marco encontrou um rapaz em mau estado, tinha sido espancado numa esplanada e deixou-o no hospital São José. Aparentemente ele falou numa Lúcia e o teu sobrinho achou que fosses tu... Mas acho que me oculta algo.
- Não quero acreditar na coincidência... Mas e quem eram os eles? Ele adiantou mais alguma coisa sobre o seu estado de saúde?
- Sabe que está vivo porque o entregou assim e deixou-o na porta das urgências. Eles... Bem... É uma longa historia! Vamos é saber do rapaz!
- Claro... Mas quero saber tudo, não quero mais segredos!

Rapidamente estavam na rua, desgovernadas na procura do amarelinho de luz verde... Tardava mas lá se aproximou um Mercedes 220 CDI nº 1989 de setembro de 2000.

- Bom dia senhor taxista, hospital de São José por favor!
- Bom dia meninas, com certeza, ele precisa de vocês!
As irmãs, arrepiadas, seguiram a viagem caladas como a cal. 
- Chegámos!
- Quanto foi a corrida? - solta Lúcia.
- Nada menina! Fiquem em saúde.
- Mas... - Aurora acotovelou a irmã - muito obrigado! - e saíram do táxi à porta das urgências.

Destinos traçados

Pedro adormeceu sobre os lençóis brancos isentos de culpa do hospital...as horas passaram tão depressa que nem deu conta do seu inglório presente. Preocupado, Pedro estava realmente preocupado. Havia algo que o inquietava, ainda escutava um burburinho de corredor, mas por estar demasiado “pedrado” não se conscientizou com aquele inferior momento. Estava mais concentrado na busca do seu subconsciente e, procurava quase insano a resposta aos seus pecados, ou a falta deles, quiçá. Perguntava-se sobre aquela abordagem tão evidente, só algo de ruim poderia vir daqueles lobos de rua...A voz da enfermeira acordou-o:

Pedro: Lúcia? És tu Lúcia?

Enfermeira Maria: Descanse Dr. Pedro, ainda está no hospital, sou a enfermeira Maria. Vá, agora durma um pouco para recuperar.

Pedro adormeceu de novo e pensava, naquele sorriso, daquela voz, daquela paixão louca em lava que fervilhava dentro de Lúcia como se não existisse o amanhã. Sentia-lhe o cheiro ainda nas veias, no seu sonho consciente estava com ela...queria-lhe certamente, o ósculo que o vento lhe levara no silêncio do corpo dos amantes, onde os lábios quebram a barreira do Universo e as mãos, numa só, desenham o equilíbrio do sangue. E agora?

Quando Pedro acordou, já eram 17 horas do dia seguinte.

Enfermeira Maria: Como está Dr. Pedro? Sente-se bem?

Pedro: Sim, acho que sim.

Enfermeira Maria: Então deixo-lhe aqui um lanchezinho para ganhar as forças. Quando estiver pronto vá ter comigo à recepção que precisamos de falar consigo.

Pedro: Claro, obrigado.

Pedro apressou-se para sair daquele lugar estranho, tinha poucas certezas, mas um que tinha é que não gostava de hospitais, aquele cheiro característico percorria-lhe as artérias do sofrimento.

Enfermeira Maria: Foi rápido Dr. Pedro, sente-se aí um pouco que já vou ter consigo.

Pedro: Obrigado.

A enfermeira Maria, acompanhada por outras enfermeiras comentava que o Dr. Pedro tinha sido trazido de uma forma misteriosa na noite anterior em mau estado.

Pedro, intrigado desconjuntou a sua carteira em mil pedaços, mas não faltava nada, nada, mesmo nada de nada, como se ele tivesse sido arremessado de um miradouro qualquer. Sim, Pedro estava bastante intrigado, no entanto, lembrava-se da voz do homem antes de acordar naquele hospital: “Não vais morrer de amor, Pedro...pelo menos hoje!”
Uma voz que não conhecia, uma voz misteriosa que sabia o seu nome, uma voz que começava a ganhar volume na sua cabeça...

Enfermeira Maria: Dr. Pedro? Dr. Pedro?

Pedro: Sim, desculpe, estava ausente.

Enfermeira Maria: Não se preocupe. Precisamos da sua assinatura para a alta.

Pedro: Sim, sim.

Em segundos assinou a papelada e pousou a esferográfica no balcão em pedra mármore já gasta pelos anos consentidos. Merecia restauro, pensou Pedro, mármore daquele já se vê pouco. Respirou e disse:

-       Pedro: Boa tarde minhas senhoras e muito obrigado.
-       Enfermeira Maria: Boa sorte Dr. Pedro, boa sorte!

Quase a chegar à porta, meteu a mão no bolso e sentiu algo estranho amarrotado. Era um guardanapo de pastelaria, e dizia:

-       Vem ter comigo, Rua Morais de Soares, 135 – 2º Esq. Lúcia.


O coração de Pedro parou sobre um desenho onde as vicissitudes da pele trespassam a pigmentação da própria cor, numa paleta onde a magia nasce  e saboreia os contrastes da tinta alterada pelo amor; submissa à vontade do mestre, a tela absorve a magia do ser e embebeda-se no percurso incerto do destino. São as tibiezas da pele que traduzem a natureza ao universo e Pedro, sorriu.