segunda-feira, maio 23, 2011

O Cruzeiro (parte 3)

 O mar bate ritmicamente no cais e sinto-me uma criança a ser embalada. Olho em redor o porto e vejo os turistas descontraídos, a aproveitar os últimos raios de sol de um dia prolongado. Para muitos não o será certamente, mas o longo Inverno é mais fácil de encarar se esquecer dias mais soalheiros. É fácil passar despercebido na nossa própria terra, mas o mesmo não acontece quando se é alto e moreno e se marca um encontro num porto turístico da Noruega. Estranho, mas é verdade, que alguém tão alto e moreno se destaque neste mar de gente.

 "Odin não está satisfeito." diz-me ele enquanto se senta. Já sentado levanta o meu copo e aponta para ele, olhando a empregada. "Nada satisfeito." acrescenta.
 "Odin nunca está satisfeito, mas era bom que percebesse que por vezes as coisas não são como planeamos." digo calmamente. Penso em beber um gole de cerveja, mas ele olha-me intensamente e percebo que aquela é uma competição que não posso perder. "Surgiram contratempos, memórias do passado. Berlim." A última palavra, dita assim, seca, sem oração, uma palavra só, daquelas que comportam, em si, todo um conto, faz com que se lhe arregalem os olhos.
 "Ainda Berlim?"
 "Ainda Berlim."
 Uma pausa prolongada. Aproveitamos ambos para aproveitar o ar fresco que vem do fiorde e perdemo-nos por instantes a olhar o reboliço do porto de turistas.




 O camarote de Malvindo estava abafado e decidimos procurar o náufrago para lhe fazer umas perguntas. Marlene é uma inconveniência e tenho de lidar com ela no Funchal. A maneira airosa seria sair com as malas e não voltar, mas o mais certo é que ela estranhasse e ainda punha a ilha em alvoroço, o que significa mais atenção. Definitivamente, uma inconveniência e daquelas que têm de ser geridas com luvas.

 O náufrago também é uma inconveniência. A julgar pelo que disse o Malvindo é preciso muito cuidado. O facto de a maior parte dos passageiros se preparar para um original cricket ao luar tem de estar relacionado com o desaparecimento da figura, porque não pode ser coincidência o barco ter uma avaria e aquele fulano estar a bordo. Quer dizer... O desaparecimento pode não ser mais que um simples não-aparecimento!
 "Assim não vamos a lado nenhum!" resmunga Malvindo pouco depois de começarmos e estranhamente concordo com ele.
 "Tens razão. Volta para a tua cabine e prepara uma mala. O que quer que seja comprometedor e duas mudas de roupa. Eu vou fazer o mesmo e tratar de arranjar maneira de sairmos daqui. Vem ter à minha cabine daqui a..." uma pausa para olhar para o relógio e calcular quanto tempo para ir fazer a mesma coisa, encontrar um bote resguardado e voltar à cabine "quarenta minutos." Pelo ar, desconfia de mim. Claro! Um homem não sobrevive neste ramo a confiar em cada bom samaritano que nos salta ao caminho. "Trabalhei durante uns tempos em navios de cruzeiro e se há coisa que sei é que não se tiram os passageiros da cama à meia-noite por causa de avarias, a menos que o barco esteja a ir ao fundo." ainda nada " Pára e pensa um bocado: barco parado, passageiros todos concentrados... Não parece um bom argumento para uma caça ao homem? Se for, eu quero estar do lado dos caçadores, não dos caçados." Ainda hesitou uns segundos antes de, sem qualquer sinal, começar a andar em direcção ao seu quarto.



 Estava já a voltar à minha cabina quando um vulto dobra a esquina do meu corredor. Pensei, pela figura, que pudesse ser Marlene e decidi segui-la. Face ao aconchego das armas com o silenciador à cintura, não consegui melhor do que ver a figura a dobrar um outro corredor. Num passo apressado, decidi chamá-la enquanto dobro a segunda esquina. A figura parou, virou-se e vi que afinal havia perseguido a figura de Fernanda, a animadora de bordo e que deveria estar a orientar os passageiros no seu original cricket nocturno.

 "Os passageiros..." cortei-lhe a palavra ainda antes que ela pudesse chegar ao verbo.

 "Você sabe tão bem como eu, ou melhor, que não há avaria nenhuma! Quer-me contar o que se passa ou procuro o capitão?" a julgar pela expressão facial, só a menção ao capitão virou a conversa para o meu lado.
 "O capitão não está disponível de momento." disse com voz tremida.
 "O imediato então..." acrescentei, tentando perceber algo da disponibilidade e virando costas como quem vai embora. Felizmente não precisei de me ir mesmo embora, embora se o fizesse talvez me tivesse limitado a dobrar a esquina.
 "Espere!" disse enquanto me agarrava um braço. "O capitão está trancado no seu quarto e não responde. O capitão Picardo não costuma fazer isto, costuma passar as primeiras noites na ponte e é homem de sono ligeiro. Algo se passa! Pode-me ajudar?"
 Acedi mais para poder chegar ao capitão do que pela voz entaramelada. Chegado à cabine do capitão ela bateu duas vezes à porta sem resposta. Na ausência de resposta, e deduzindo que não seriam as primeiras tentativas, dei violentamente com uma das solas na fechadura. A porta mal estremeceu, ao contrário da minha perna! "Blindada?" perguntei a Fernanda. "Não. Em caso de necessidade o capitão fica com a tripulação na ponte." Pois, em caso de necessidade todos saem dos quartos a correr e portanto as portas abrem para fora. Como pude ser tão parvo? Olho em redor e vejo que o extintor mais próximo se encontra a cerca de 50 metros, o que é estranho quando os procedimentos de segurança mencionam 30. "Pode-me ir buscar aquele extintor?" Ela vira costas e eu rapidamente tiro uma das armas, dou três disparos certeiros onde penso estarem as dobradiças e volto a guardar a arma. Ao fundo do corredor ela acaba de remover o extintor da parede e parece-me que não se apercebeu.
 Uma vez dentro da cabine do capitão, Fernanda correu para o quarto enquanto eu me preocupava mais com um fax com o timbre da Interpol.

 "Não!" gritou ela no quarto e pensei eu ao ver o fax com o currículo do náufrago. Desliguei-me daquele momento e transportei-me para uma casa a arder em Berlim, dois prisioneiros na cave e uma pequena fortuna em armas, prestes a irem pelos ares e a chamar muita atenção para uma operação discreta...
 Cambaleei para o quarto. A tenente era agora uma carpideira cobre o corpo pálido do capitão.

 "O náfrago?" perguntei, sem convicção e acabei por ficar sem resposta, ocupada que estava. Voltei a perguntar. Voltou a não responder. Levantou o olhar. Vermelhos de dor e encarnados de raiva, assim estavam os seus olhos, como se vermelho e encarnado fossem duas cores diferentes, a mesma manifestação de dois sentimentos distintos.

 "O capitão não vai acordar, está demasiado pálido." disse-lhe com aquilo que mais tarde percebi ser uma frieza que só se adquire passando muito tempo com cadáveres. Demasiado tempo, na opinião de alguns. "Nós estamos vivos, mas a julgar por isto" passo-lhe o currículo para a mão "não sei por quanto tempo. Volto a perguntar: onde está o náufrago?" Enquanto ela lia o fax eu perguntava-me como podia ter sido tão parvo. Malvindo tinha-o reconhecido mesmo sem a barba e com o bronze e a fuligem. E estaria o cabelo pintado?
 "Isto é terrível! O Paul desconfiava de algo, mas isto vai para lá do imaginável." e continuou a contar-me o que Paul imaginara. O que Paul, ela e mais um grupinho engraçado imaginaram!
 "Fernanda, " interrompi " ainda não me disse onde posso encontrar o náufrago!"
 "Mas você quer enfrentar um louco? Tem de ser..." a frase ficou em suspenso porque entretanto eu tirara as armas. Ainda ameaçou gritar mas o som não saiu.
 "Isso! Não vale a pena estarmos a chamar a atenção." respiro fundo "Não vale a pena fazer de conta que sou dos tipos bons, mas se quiser ver o mundo a preto e branco, basta-lhe saber que estou consigo, enquanto estiver comigo. Há no mundo pessoas como eu, más por necessidade, e outras más por natureza. O nosso amigo Salvador está na segunda categoria. Eu estava de férias, mas acontece que o nosso amigo tem muita gente má à procura dele. É o chamado mau entre os maus." o olhar dela não era agora tão esbugalhado, mas ainda parecia bloqueado no cano da arma. Ainda! Inconscientemente apontara-lhe uma das armas...




 A explicação ainda demorou um pouco mais, mas finalmente acedeu a ajudar-me. Quando cheguei à minha cabina já o Malvindo lá estava, com ar de libelinha perdida. Quando nos viu esbracejou. Quando os apresentei bufou. Quando contei o que aconteceu passou-se, mas o pior tinha sido mesmo o apresentá-los, o ela saber.

 "E o que se faz com ela depois?" chegou mesmo a perguntar, enquanto eu tomava a dianteira para o bote onde guardara a minha espingarda e a roupa.

 "O que se faz é deixá-la para poder voltar à vidinha dela. Estou de férias e não tenho ninguém marcado."

 "Mas e o que ela sabe? Quem sabe tanto não pode andar por aí à solta!"
 "Isso não é da minha responsabilidade. Vai connosco na balsa e depois logo se vê, mas se não houver espaço para ela, você fica já aqui!" Se não fosse o que ele disse a seguir, com um sorriso de escárnio, penso que era capaz de lhe ter apontado a arma.
 "Balsa? Meu menino, tens menos de uma hora para fugires ao heli! De balsa nem chegas a ver as luzes do Funchal. Aprende com os mais velhos e ouve-me." e, esquecendo Fernanda, prosseguiu contando o plano para fugirmos daquele barco.




 Atirei a cabeça para trás e senti o sal do fiorde a bater-me no rosto.

 "No heli da polícia?" perguntava-me estupefacto "No heli sem matar ninguém?"
 "Sim. Eu próprio quando ouvi o plano não queria acreditar, mas funcionou lindamente."
 "Onde o deixaram?"
 "Na Madeira. Aterrámos lá num pico, pegámos fogo àquilo e descemos à boleia para o Funchal. Já estava tudo apalavrado com o contacto e foi só tratar das formalidades."
 "E a gaja?"
 "Ela e o Malvindo pintaram um quadro de rapto e voltaram para o barco. Da última vez que ouvi falar nela tinha-se despedido da companhia de navegação. Não sei se há relação, mas conta-se que para se chegar à Fada Madrinha agora tem de se falar com um tal de Duende de Saias, mas não confirmo." gargalhada!
 "Espera, aí! O Duende trabalhava num paquete?" encolho os ombros e ponho um ar de falsa inocência. "E estão-se a dar bem?"
 "Não mantive contacto. Das duas vezes que me cruzei com aquele fulano as coisas tomaram um rumo que só vejo em filmes, e dos maus!"
 "E Berlim? Fechaste Berlim?"
 "Berlim está fechado. Com um bocado de sorte fica com as culpas do rapto, do heli, do massacre a bordo. Acho que planeado não ficava mais limpinho."
 "Mexe com muita gente..."
 "Mais do que recomendável para ser bem feito."
 "Mas... Assim do nada?"
 "Se fosse um poeta ou um skald dizia-te, por palavras cantadas, que apareceu à minha frente e que reagi tão depressa que foi só atirar. Não foi tão poético, mas podemos passar essa história."