terça-feira, abril 29, 2014

Mais perto

Quero escrever-te como és,
Completamente tu,
Mas as palavras são tão suaves.
Entre a beleza que me fizeste tocar
E o papel em que escrevo,
Criou-se uma distância abismal.
Ainda assim tento. Uma vez mais...
Assumo o risco de não te fazer justiça,
Tanto na descrição como na memória...
Para onde foi a minha expressão fluída,
Que não a sinto quando te articulo em frases?
Por onde anda a consciência do meu sentir?
Apenas me chegam palavras insuficientes,
curtas demais para o sabor que me tens.
Se te pudesse olhar novamente,
Se te pudesse encontrar na minha pele,
Se te pudesse tudo... E um pouco mais.

Anda para onde te veja, mais perto, mais perto.

segunda-feira, abril 28, 2014

Idade do armário

Lúcia, ainda enrubescida e ofegante das memórias que há muito pouco tempo brincavam nos seus pensamentos, ficou instantaneamente pálida e … como se todo o seu sangue se tivesse congelado em simultâneo!

- Entra….. herg! Bom dia! – disse, enquanto concentrava todas as suas energias em manter um aspecto sereno – Entra, vou fazer um chá!

Aurora notou um certo desconforto na irmã, mas não conseguiu identificar a sua origem.

- Tens companhia? – atirou à queima roupa, afinal eram as duas adultas, e apesar de não ter crescido juntas, da diferença de idades, e de certa forma não terem a cumplicidade que muitas irmãs partilham, eram ainda assim bastante próximas, e poder-se-ia dizer que não guardavam segredos uma da outra.

- Não… - respondeu Lúcia com a voz, ainda, um pouco intermitente – Ainda estava a dormir. Quer dizer, ainda estava na sorna na cama, porque já tinha acordado há um bom bocado… Mas não me apetecia levantar! Deve ser da mudança de hora! – Lúcia sorriu para a irmã e tentou parecer um pouco mais desperta – Senta-te enquanto faço o chá! Earl Gray, ou preferes outra coisa?

- Desculpa – respondeu a irmã! – Achei que já estavas acordada, acordas sempre cedo! Por mim Earl Gray é perfeito, bem sabes…

Lúcia encheu uma cafeteira de água e ligou o gás do fogão, tirou um pouco de pão do dia anterior do armário e cortou em fatias para torrar… Mas enquanto cortava as fatias de pão o seu pensamento voava para muito longe daquela cozinha! Mas para uma cozinha também, mais precisamente para o dia em que a avó Lúcia a foi buscar à terra para vir morar para Lisboa… Mais precisamente o dia em que nasceu o Marco! Lúcia tinha seis anos, e a sua mãe ficara muda de um momento para o outro, não podia continuar a viver naquela casa! Quer dizer, poder podia, mas não era certamente o ambiente indicado para educar uma criança, e sendo assim a avó Lúcia foi recolher a neta com o mesmo nome e criou-a como se fosse sua filha! Lúcia só percebeu o porquê da mudez da mãe na noite em que morreu a sua avó… Lembra-se como se tivesse acontecido na noite passada, alias o normal é acordar a pensar que acontecera ainda na noite passada e a relembrar palavra por palavra, suspiro a suspiro as últimas confissões da avó… Lúcia voltou um pouco mais tarde da escola nesse dia, porque tinha ficado na malandrice com o João, que era o seu namorado na altura. Chegou a casa e encontrou a avó na cama, o que não era nada habitual! Aliás, nunca tinha acontecido! Ao ver aquilo, Lúcia, a neta, uma jovem de 17 anos, com algo mais que hormonas a circular no seu sangue ficou claramente transtornada, e talvez até um pouco paranóica. A avó descansou-a a dizer que estava tudo bem, que era certamente culpa da tempestade que se ia fazer sentir nessa noite… Lúcia fez o jantar, e sentou-se ao pé da cama da avó, ainda sem saber, que estavam a partilhar a última refeição juntas. Naquela noite a avó contou-lhe tudo. Tudo o que aconteceu, contou-lhe porque razão a sua mãe ficara muda, e porque é que Lúcia teve de vir morar para Lisboa… Lúcia lembra-se de cada palavra… E do último suspiro da avó, com ele apagaram-se as luzes, não só daquela mulher de mãos ásperas e coração mole, mas de toda a cidade e de mais de metade do país… Lúcia não chorou, mas ficou triste e as nuvens escuras que invadiram o seu olhar nunca desapareceram completamente, e se olharmos com atenção ainda podemos ver bem lá no fundo, depois do olhar luminoso como que uma bruma, uma opacidade… Ainda podemos perceber o peso de uma nuvem escura no horizonte de um radiante dia de sol!
E aquela água que lentamente vai levantando fervura dentro da cafeteira é como se fosse dentro de Lúcia… Como se fossem todos estes pensamentos a agregarem-se em minúsculas bolhas de ar que crescem e logo saltam pela tampa… E tudo isto borbulhava cada vez mais intensamente na sua cabeça… Será que a irmã sabia que ela sabia? Porque é que lhe veio pedir conselhos sobre o filho a ela?

Porquê a mim, se eu nem tenho filhos? Aliás, sou praticamente da idade do Marco… OK, sou 6 anos mais velha… mas seis anos não são nada… Nem conheço ninguém, para além da Aurora, que tenha filhos… Ela certamente sabe mais de miúdos que eu… Eu nem nunca tive um animal de estimação… quer dizer tive uns quantos namorados, mas esses não contam, pois não? E por “uns quantos” não quero dizer muitos, não se ponham já com ideias… Tive a quantidade certa… OK?

A água da cafeteira entrava estava agora a ferver violentamente, Lúcia, enquanto colocava o chá, perguntou à irmã:

- O que é a idade do armário?

Pôr-do-sol no Adamastor

E céu tinha voltado a ficar limpo, mesmo a tempo de apreciarem o pôr-do-sol no Adamastor, mas ainda não tinha chegado a noite e Lúcia teve que ir embora, levantou-se, beijou-lhe intensamente a face esquerda e disse “Adeus!” , e foi… Leve como quando tinha chegado!
A Lúcia foi-se embora, quase tão abruptamente como tinha entrado na vida dele… O céu tinha voltado a ficar límpido, mas nem por isso a mente de Pedro estava mais desanuviada! Pedro estava sozinho naquele miradouro! Sozinho não é bem o caso, ficou rodeado de uma multidão de pessoas de todos os tipos, idades e cores! Uma mistura surreal como se tivessem sido escolhidos a dedo para representar as várias partes da sociedade lisboeta, uma espécie de mini-arca de Noé, mas de pessoas, e de Lisboa. Enfim, uma pletóra de pessoas… Pedro gostava muito desta palavra: Pletóra! Soava-lhe bem…  Mas, mesmo estando rodeado desta pletóra de pessoas, Pedro estava sozinho, agora que Lúcia se foi embora, e que o céu voltara a ficar limpo… Sozinho, não! Estava ele; o Adamastor; as projecções minúsculas dos humanos que tentavam conquistar e subjugar o  Monstrengo; o final do pôr-do-sol a projectar tons avermelhados nas fachadas húmidas dos prédios e as sombras longas das colinas; o formigueiro na sua face esquerda e todas as memórias da tarde que agora terminava!
E Pedro olhava todas estas pessoas como se estivessem ali apenas para preencher o vazio, como se aquele miradouro estivesse sempre ocupado pelas mesmas pessoas, ainda que fossem caras, corpos e almas diferentes! Era a primeira vez que estava ali, mas era-lhe muito fácil imaginar tudo isto!
A dada altura uma miúda com tanto ar de inocente como de marota sentou-se ao seu lado e tentou convencê-lo de que se conheciam de algum lado! Enquanto falava de uma imensidão de locais onde Pedro nunca estivera a sua mini-saia subia-lhe pelas pernas descuidadamente deixando entrever onde acabavam as meias! Havia alguém que dançava atrás dela, ouviasse o som de uma guitarra, e algumas das pessoas começavam a vestir-se e a abandonar a praça como que oficializando o final do pôr-do-sol… E, Pedro olhava para tudo isto com a mesma indiferença que as folhas de um sobreiro olham para a passagem do inverno!
Os seus pensamentos, certamente hipnotizados pelo malabarista de fogo, viajavam por toda a aquela tarde! Pela primeira vez que viu Lúcia: a entrar, quase descoordenadamente, no miradouro da Graça… Poderiam ter trocado o primeiro olhar naquele momento, mas Pedro desviou os olhos como se tivesse medo de que Lúcia estivesse, também ela, a olhar para ele… Como se a troca de olhares o pudesse fulminar num segundo… Num piscar de olhos! E depois, a rapariga pôs-se a dar de comer aos pombos, ele, Pedro, odiava esses ratos voadores, mas não teve tempo de pensar, pois não? Num segundo aquela miúda precipitou-se sobre ele, e levou-o a passear por aquelas colinas! E não se limitou a precipitar sobre ele, precipitou-se sobre toda a sua vida até ao momento. Reduziu, num breve segundo, toda a sua existência naquela tarde de verão em Lisboa, como se toda a sua vida, o seu propósito fosse o de estar ali naquele momento a receber umas gotas de vinho do porto nos seus lábios e que agora lhe faziam adormecer a parte interna das bochechas com uma espécie de formigueiro que não conseguia descrever… E lembrou-se de tudo isto… Da forma abrupta com que ela lhe agarrou a mão e arrastou para o eléctrico, e como lhe mostrou numa tarde mais sobre ele, do que ele imaginava saber… E daquele momento no miradouro de S. Pedro de Alcântara… Sim, aquele momento! Percebia agora, com demasiada clarividência, a electricidade daquele momento, e na sua cabeça uma pergunta baloiçava:

- Porque não a beijei? Porque raio é que não a beijei logo!? Devo ser mesmo parvo! E ela deve ter ficado a pensar que sou um tótó… Ficou com certeza!!!

Tinha decidido que precisava de uma viagem de procura interior depois do que acontecera no Porto, e por isso tinha viajado por todo o país, e uma bela parte da Europa… Um viagem! Uma procura! Um encontro consigo mesmo! Mas não era nada disso, pois não?
E olhava a paisagem de vez em quando como que tentando entreter os seus pensamentos para não chegar à conclusão óbvia! E olhava a margem sul, e aquela ponte que a unia a Lisboa! Olhava para estas duas margem, o lá e o cá, o rio que se entrepõe, e a passagem estreita, e pensava como eram diferentes as margens do Tejo e do Douro… Como teve de chegar aqui neste momento, e conhecer uma rapariga num miradouro de Lisboa para constatar o óbvio, não é?

- Foi preciso tudo isto para saber que não estava a viajar para lado nenhum, não é? Foi preciso tudo isto para saber que estava apenas a fugir…