quarta-feira, setembro 24, 2014

Borboletas na barriga

Borboletas na barriga...imensas explosões no peito que fariam girar o mundo um milhão de vezes e, um sorriso capaz de derrubar as barreiras do tempo. Era assim que Pedro se sentia: apaixonado, sim! Ele estava apaixonado. Inspirado, já tinha alugado um apartamento na Lua por tempo indeterminado, vivia no epicentro da sua existência, enfeitiçado pelo olhar que permanecia na sua memória: dançava nas estrelas com Lúcia, dançavam juntos...
Pedro já não caminhava, corria sobre os carris do eléctrico como uma bala, sentia as gotas de suor a embater no ferro com violência desmaterializando o seu reflexo. Exausto, ainda morro de amor antes de beijar os seus lábios – pensava Pedro sempre que os seus músculos gritavam de dor, gritavam por socorro! Ai meu Deus!!! Dá-me forças caramba!!! – Gritava Pedro, já em desespero.

Ainda estava longe, muito longe. No fundo Pedro sabia que jamais conseguiria manter aquele ritmo e chegar até Lúcia com vida. Precisava de parar, era urgente parar. Pedro parou, ainda longe do seu destino, tão longe que o fez pensar na borrada de não esperar pelo autocarro ou, pelo táxi, que não apareceu naquele crucial momento. Que raiva! – gritou Pedro com raiva, imobilizando um olhar indiscreto de uma senhora, já de idade avançada, que passava devagar.

Velhinha: Sente-se bem meu filho? Perguntou a senhora de idade.

Pedro: Sim, simmmm. Desculpe, estou exausto.

Velhinha: Saia do meio da estrada, venha até ali ao banco de jardim um pouco. Ai como está meu filho, encharcado até aos ossos da pele.

Pedro respirou fundo e enquanto caminhava junto da senhora até ao humilde banco de jardim pensava que, estaria certamente perdido. Já não sentia nada, apenas a dor reivindicava o direito de presença. Que fiz eu? – falava Pedro furioso consigo.

Velhinha: Vá, meu filho, fique aqui que eu vou ali à mercearia comprar umas bananas e já venho ter consigo. Não saia daqui! – falava a senhora de idade à medida que se afastava.

Pedro já não ouvia nada, deitou-se no banco, olhou o céu a sentir terlintar dos seus músculos e pensou no quanto estava exausto, no surreal o pulsar do sangue nas veias, parecem loucas as curvas das articulações que se desenham em precipícios verticais, no limite profundo da mente e do desejo. Em segundos, a respiração entra num outro estado, numa outra razão de incandescência, onde permanece em perfeita lucidez aguda, superando cada patamar pré-definido nas gotas de suor que deixam a pele para sempre. Outro concerto, outro palco de marionetas desengonçadas, apenas em equilíbrio devido ao axioma da pauta cravada no corpo...

Velhinha: Vá meu filho, levante-se coma uma banana! – disse a senhora de idade.

Pedro: Obrigado. – disse Pedro enquanto se tentava endireitar naquele branco que já lhe parecia familiar.

Velhinha: Meu filho, já está a ficar com outra cara, assim já gosto mais, mas conta-me lá o  que aconteceu.

Pedro: Se soubesse...

Velhinha: Eu sei meu filho – interrompeu a senhora já de idade.

Pedro: Sabe? – perguntou Pedro com um ar espantado.

Velhinha: Sim, eu sei, esta vida já não me esconde os seus segredos, nem esse. O de amor que nos mata e que nos mantém vivos. Sabes meu filho, nem sempre fui velha, já fui nova e bela. Tive muitos pretendentes, mas apenas casei com um deles, o único homem que amei nesta vida e de quem tenho tantas saudades, tantas... – a senhora de idade chorou – Sabes meu filho, nesta vida, desenham-se cousas transcendentes, coysas que existem para além das coisas das cousas, que existem sobre os pilares do Mundo, numa frágil pétala onde sobrevive o coração que se eleva no beijo do vento e que se encantada pelo desejo do Sol enfurecendo as planícies desertas apenas para sorrir uma vez mais.

Pedro estava espantado a escutar a senhora já de idade, na verdade estava sem palavras e apenas conseguiu soltar umas curtas palavras.

Pedro: Como se chamava o seu marido?

Velhinha: Pedro, sim Pedro era o seu nome.

Pedro: Como eu, também sou Pedro.

A senhora já de idade sorriu, beijo-lhe a testa e afastou-se devagar, desejando-lhe boa sorte e muita coragem. Já a uns bons metros Pedro gritou:

Pedro: Como se chama?

Velhinha: Lúcia, meu filho, Lúcia.


Pedro sentou-se, não queria acreditar na coincidência e levantou-se em dois tempos seguindo em direção de Lúcia, a sua cara metade. Nada mais importava para Pedro, apenas a respiração sobre os cabelos negros de Lúcia que dociliza a fera do destino; choravam-lhe me as mãos destas todas as coysas que interruptamente teimavam em o afastar do seu destino, sentia-se capaz de derrubar as barreiras de fogo com o mármore da sua pele...

quarta-feira, agosto 13, 2014

Aranha

Apressa-se numa refeição estonteante
numa vereda amarfanhada
eléctrica e mortífera;
vibram-lhe os tentáculos musculados
para se extasiar cegamente.
Devora a vítima nos imensos cantos do enigma,
numa ressequida viagem paupérrima,
aglutina, revertendo-se simulada.
Vertiginoso e efémero momento...
são escassos segundos no compasso cru,
como um bisturi...golpeia com precisão,
a pele nua e sonâmbula.
Tombam as vítimas inertes na calçada,
apenas existem as luzes toscas,
dos imensos e solitários candeeiros de ferro;
escurecem os gritos roucos
entre os espaços negros de sangue,
que restam dos poucos minutos de vida...

Artur Patrício

Silencio

Silencio 
aproveito o silencio da noite
quebrado por musica 
produzida por uma agulha 
riscando um prato de vinil

silencio da noite 
que faz pensar em momentos
passados contigo 
momentos que poderíamos ter passado 

aproveito o silencio da noite
para te esquecer
para me reintegrar
para me reagrupar
para me reconstruir
para te colocar no álbum de recordações
que tu teimas em não ficar
com a tua constante presença 

este silencio nunca mais será o mesmo 
será sempre mais silencioso
será sempre mais solitário
será sempre mais triste

até esquecer e perder te na memoria

sinto me muito mais calmo sem ti 
muito mais solitário

e a agulha risca a ultima linha do prato de vinil
e o silencio volta a ser mais profundo 
depois de ti

Manuel Garcia

terça-feira, agosto 12, 2014

The Bad Wolf...



A meu lado caminha um lobo,
que nunca se perde e nunca se cansa.
Sempre à distância de um olhar o encontro, esperando por mim.
A beleza dos seus olhos e a prata do seu pelo, escondem a sua verdadeira natureza,
pois o meu lobo é feito de paixão, de raiva e de medo.
É feito de uma fome infinita,
que nem mil vidas conseguiriam saciar.

Houve tempos em que não resisti em tocar-lhe,
em mergulhar no seu manto de seda  e sentir o seu calor.
Como qualquer animal selvagem, rasgou-me a carne,
dilacerou-me o peito, deixando-me à beira da morte.
E eu aprendi. Aprendi a caminhar a seu lado,
Contemplando-o em toda a sua infinita beleza, sem o deixar aproximar.

Mesmo no mais escuro breu, vejo o brilho dos seus olhos, o seu apelo silencioso,
E sei: caminharemos sempre lado a lado, eu e o meu lobo,
e só depende de mim, mantê-lo afastado.

segunda-feira, agosto 11, 2014

Segundos

A chuva intensa ocultava-me por completo o caminho, restava-me apenas esperar por um milagre ou recolher-me num barracão velho que vira metros antes. O cenário era fantasmagórico, esperava-me um caminho às escuras delimitando o abismo...Parecia um filme a preto e branco. Na minha mente, além da pele encharcada, recordava os velhos filmes monocromáticos; era assim que eu estava, rodeado de incertezas e todas em tons cinza. Pesadelo! Tentava respirar conscientemente, quase sincronizadamente ao som das gotas pesadas que gritavam assim que embatiam no solo. A chuva intensa parecia não querer abrandar.
Tinha a certeza que ninguém vira o meu carro na ravina, nem sabia que ainda estava pendurado pela raiz daquela árvore velha. Tinha tido muita sorte apesar da infelicidade do acidente. Confesso. Apenas isso me mantinha equilibrado: pensar que não tinha que ser, não era esta a minha hora. Existe algo mais a fazer aqui neste mundo dos homens...
Finalmente tinha chegado ao barracão velho, parecia-me intacto embora muito envelhecido. Abri a suposta porta e senti cada gota de água na minha  pele a gelar, instantaneamente fiquei petrificado que o meu coração quase que parou. Fiquei ali, imóvel ao ver a imagem que a luz da Lua me mostrava, um texto, escrito toscamente num vermelho vivo que dizia: Foge!!!

segunda-feira, agosto 04, 2014

Descoberta

- A idade do armário é possivelmente o período mais entrópico do esquentamento da cafeteira. A conquista dos limites emocionais e físicos, a descoberta da identidade, num conflito constante entre as duas fases. Para crescer é preciso gerir e regular a combustão para que não se entorne demasiada água e se apague o lume da vida prematuramente... Os limites parecem excentricidades aos olhos dos adultos mas eles são os mais genuínos! - respondeu Aurora enquanto ajudava a irmã a desligar a cafeteira nervosa.
- Obrigado irmã por adoçares o meu intelecto com o chá da vida.
- De nada. Curiosidade... Estás na idade tardia do armário? A ver pela violência da fervedura deves ter regressado à puberdade... Quem te esquenta a cafeteira?

Um silêncio pautou enquanto oxidavam as folhas aromáticas. Lúcia ergueu os olhos na direção da irmã - uma lágrima solitária e salgada caía na sua chávena criando um turbilhão de amargura.

- Encontrei o fio condutor da minha vida à mesma velocidade que o perdi. Esta palpitação que alimenta o nervosismo da minha existência é único... Errei ao tê-lo deixado cair com uma  leveza eléctrica!
- De quem falas tu? - perguntou Aurora completamente surpresa com a desinibição emocional da irmã.
- Falo da minha luz, do meu calor, do meu odor, do meu sabor... Que a minha estúpida razão deixou para trás. A combinação de metade da minha essência, ele, Pedro! 
A chávena tornará-se agora um depósito saturado de testemunhos. Aurora, emparelha suas mãos nas da irmã e com ternura e sabedoria, tranquiliza-a.
- Nem tudo está perdido. Ficaste com algum contacto? 
- Não! Saiu abruptamente.
- Assim é mais difícil mas... - o toque do telefone, electric eye, de Judas Priest, mais uma das partidas de Marco, interrompe o raciocínio de Aurora - é o teu sobrinho, o que terá feito para ligar a esta hora?

"Sim filho?! Que se passa? Encontraste quem? Hospital? A tua tia está aqui... Como disseste que ele se chamava? Está em que hospital? São José... mas está bem? Achas que foram eles? Calma, vá até logo filho. Txau!"


Lúcia petrificou o seu olhar no horizonte do corredor enquanto Aurora lhe batia na face.

- Lu, vá! Não entres em choque, explico já o que acabaste de ouvir - nisto Lúcia regressa à realidade fixando o olhar no leito ternurento e sábio de sua irmã - Marco encontrou um rapaz em mau estado, tinha sido espancado numa esplanada e deixou-o no hospital São José. Aparentemente ele falou numa Lúcia e o teu sobrinho achou que fosses tu... Mas acho que me oculta algo.
- Não quero acreditar na coincidência... Mas e quem eram os eles? Ele adiantou mais alguma coisa sobre o seu estado de saúde?
- Sabe que está vivo porque o entregou assim e deixou-o na porta das urgências. Eles... Bem... É uma longa historia! Vamos é saber do rapaz!
- Claro... Mas quero saber tudo, não quero mais segredos!

Rapidamente estavam na rua, desgovernadas na procura do amarelinho de luz verde... Tardava mas lá se aproximou um Mercedes 220 CDI nº 1989 de setembro de 2000.

- Bom dia senhor taxista, hospital de São José por favor!
- Bom dia meninas, com certeza, ele precisa de vocês!
As irmãs, arrepiadas, seguiram a viagem caladas como a cal. 
- Chegámos!
- Quanto foi a corrida? - solta Lúcia.
- Nada menina! Fiquem em saúde.
- Mas... - Aurora acotovelou a irmã - muito obrigado! - e saíram do táxi à porta das urgências.

Destinos traçados

Pedro adormeceu sobre os lençóis brancos isentos de culpa do hospital...as horas passaram tão depressa que nem deu conta do seu inglório presente. Preocupado, Pedro estava realmente preocupado. Havia algo que o inquietava, ainda escutava um burburinho de corredor, mas por estar demasiado “pedrado” não se conscientizou com aquele inferior momento. Estava mais concentrado na busca do seu subconsciente e, procurava quase insano a resposta aos seus pecados, ou a falta deles, quiçá. Perguntava-se sobre aquela abordagem tão evidente, só algo de ruim poderia vir daqueles lobos de rua...A voz da enfermeira acordou-o:

Pedro: Lúcia? És tu Lúcia?

Enfermeira Maria: Descanse Dr. Pedro, ainda está no hospital, sou a enfermeira Maria. Vá, agora durma um pouco para recuperar.

Pedro adormeceu de novo e pensava, naquele sorriso, daquela voz, daquela paixão louca em lava que fervilhava dentro de Lúcia como se não existisse o amanhã. Sentia-lhe o cheiro ainda nas veias, no seu sonho consciente estava com ela...queria-lhe certamente, o ósculo que o vento lhe levara no silêncio do corpo dos amantes, onde os lábios quebram a barreira do Universo e as mãos, numa só, desenham o equilíbrio do sangue. E agora?

Quando Pedro acordou, já eram 17 horas do dia seguinte.

Enfermeira Maria: Como está Dr. Pedro? Sente-se bem?

Pedro: Sim, acho que sim.

Enfermeira Maria: Então deixo-lhe aqui um lanchezinho para ganhar as forças. Quando estiver pronto vá ter comigo à recepção que precisamos de falar consigo.

Pedro: Claro, obrigado.

Pedro apressou-se para sair daquele lugar estranho, tinha poucas certezas, mas um que tinha é que não gostava de hospitais, aquele cheiro característico percorria-lhe as artérias do sofrimento.

Enfermeira Maria: Foi rápido Dr. Pedro, sente-se aí um pouco que já vou ter consigo.

Pedro: Obrigado.

A enfermeira Maria, acompanhada por outras enfermeiras comentava que o Dr. Pedro tinha sido trazido de uma forma misteriosa na noite anterior em mau estado.

Pedro, intrigado desconjuntou a sua carteira em mil pedaços, mas não faltava nada, nada, mesmo nada de nada, como se ele tivesse sido arremessado de um miradouro qualquer. Sim, Pedro estava bastante intrigado, no entanto, lembrava-se da voz do homem antes de acordar naquele hospital: “Não vais morrer de amor, Pedro...pelo menos hoje!”
Uma voz que não conhecia, uma voz misteriosa que sabia o seu nome, uma voz que começava a ganhar volume na sua cabeça...

Enfermeira Maria: Dr. Pedro? Dr. Pedro?

Pedro: Sim, desculpe, estava ausente.

Enfermeira Maria: Não se preocupe. Precisamos da sua assinatura para a alta.

Pedro: Sim, sim.

Em segundos assinou a papelada e pousou a esferográfica no balcão em pedra mármore já gasta pelos anos consentidos. Merecia restauro, pensou Pedro, mármore daquele já se vê pouco. Respirou e disse:

-       Pedro: Boa tarde minhas senhoras e muito obrigado.
-       Enfermeira Maria: Boa sorte Dr. Pedro, boa sorte!

Quase a chegar à porta, meteu a mão no bolso e sentiu algo estranho amarrotado. Era um guardanapo de pastelaria, e dizia:

-       Vem ter comigo, Rua Morais de Soares, 135 – 2º Esq. Lúcia.


O coração de Pedro parou sobre um desenho onde as vicissitudes da pele trespassam a pigmentação da própria cor, numa paleta onde a magia nasce  e saboreia os contrastes da tinta alterada pelo amor; submissa à vontade do mestre, a tela absorve a magia do ser e embebeda-se no percurso incerto do destino. São as tibiezas da pele que traduzem a natureza ao universo e Pedro, sorriu.

quarta-feira, julho 09, 2014

Lisboa (Por entre as sombras e o lixo)

Lisboa… Cais do Sodré! A noite cai vagarosamente aqui. Olho em redor e vejo a multidão, caras fugidias e fechadas depois de um dia de trabalho e os olhos abertos a custo, que clamam por descanso. Aqui e ali uma comadre e outra trocam a rotineira cusquice. Ao redor a escuridão do calcário sujo dá ainda um tom ainda mais sombrio a toda a sujidão da zona portuária. Terá sido a cheia do rio ou a vazão do homem quem encheu as esquinas de entulho? Lá ao fundo, junto à rua do Alecrim, uns tímidos néons anunciam bares de especialidade duvidosa, onde se encontram já certamente a Alice e a Coxa… O Quim Navalhas também ciranda já as suas meninas, não venha o Ruca Batuta tentar levá-las para Monsanto…

Encosto-me a uma parede, meio caminho entre o barco e o comboio, enquanto vejo os movimentos na praça. Com mestria enrolo um charro que ponho logo à boca. Já combinei tudo com o Miguel e só nos falta droga suficiente para adormecer um elefante. Levo a mão ao bolso. Ainda lá tenho o monte de notas! Entro na praça e dirijo-me à fila de táxis que aguardam junto à Hora Legal. Dirijo-me ao primeiro e entro.
“Casal Ventoso, se faz favor!” digo ao taxista, com o charro dependurado no canto da boca. É hoje que parto deste buraco sem fundo. Eu e o Miguel!

Lisboa… Uma nuvem de fumos e salpicos de rio, escurecida pela multidão em movimento frenético, para trás e para diante, sem rumo certo e sem destino, embrutecida pela rotina do dia-a-dia. Hoje cansámo-nos e decidimos não deixar que a rotina se apoderasse de nós e, num acto de loucura, decidimos que algum dos barcos que descarregam na Rocha Conde de Óbidos irá para um lugar melhor que este.

“Aqui dentro não há dessas porcarias.” Responde à bruta o taxista. É um desses típicos taxistas de Lisboa: camisa às riscas, com os dois botões de cima abertos e os cabelos do peito cuidadosamente penteados. A unha do dedo mindinho muito longa e cuidada, serve essencialmente para limpar os ouvidos, com que escuta minuciosamente as conversas da clientela. “Está apagado, não se preocupe.” Respondo-lhe, enquanto me sento.

“Para o Casal não o levo. O melhor que lhe faço é deixá-lo em Alcântara-Terra.” Responde-me, ainda visivelmente contrariado. Para ir para onde ele me deixava, o 15 tinha servido e ainda era mais barato “e se me deixar na avenida” pergunto, “quer ir até Alcantâra eu levo-o, senão pode sair com as suas porcarias”. Não me lembro do 15. “Pode na ponta dos armazéns então?”

Assim que ele me larga dirijo-me a uma cabine telefónica. Que fica longe, do outro lado dos armazéns. Não tenho muitos trocos, mas preciso de confirmar com o Miguel.

“Estou” atende-me ele.

“Já estou em Alcântara. Vens cá ter ou vou andando sem ti?”

“Espera por mim no Pão de Açúcar.”

Dirijo-me ao supermercado e espero por ele, no bolso esquerdo um saco com os restos de cavalo, e no esquerdo haxe para uma semana. Enrolo um charro, coloco uma linha no meio, não sei se alguém já se lembrou desta merda, acendo-o e começo a sorver vagarosamente. Apercebo-me então que a escuridão vai caindo com todo o seu peso. Fica escuro, mas as luzes de um amarelo pálido disfarçam isso, impelindo-nos a todos para que não paremos. Pobre artifício dos tempos modernos! Olho bem à minha volta. Mesmo os que entram para o super não se apercebem, mas todos como que cantam um cântico triste, sonolento, uma música de embalar, que nos entorpece os membros, nos deixa moles, letárgicos, imóveis…

Reparo que o meu charro está quase no fim. Reparo que olham para mim de lado e se afastam. Sinto falta de calor humano e sento-me, encostado à parede, o Miguel Pedro não terá dificuldades em me encontrar se ficar aqui assim. Enquanto espero fascino-me, por um qualquer desígnio misterioso, com o monte de lixo que se amontoa junto à porta do armazém do super. Vejo uma caixa a remexer-se e de baixo sai uma enorme ratazana, que me olha por uns instantes e segue o seu caminho para dentro do armazém.

Acordo com o frio da noite e as mãos do Miguel a baterem-me no rosto. Deixei-me adormecer e agora apenas vultos passam à minha frente, um esporádico carro a acelerar e os ratos e ratazanas a rastejar. Olho para as horas. Não passou muito tempo, mas agora o céu é de um escuro como carvão, brilhando apenas um pouco quando passa um carro com os seus faróis, e outro, e logo outro, sucedendo-se até ao infinito.
“Cabrão de merda” diz o Miguel “tinhas de te pôr a fumar sem mim!” e dá-me mais um valente estalo para eu aprender. Tento pôr-me de pé e não consigo. O Miguel dá-me um bico de lado, pega-me pelos ombros e põe-me de pé. “Nem penses que vou sozinho, seu filho da puta!” Pomo-nos a caminho do Casal. Com o ar frio a bater-me no rosto e um cheiro a escape seguimos Avenida de Ceuta acima, merecendo olhares reprovadores dos transeuntes. Não me lembro muito bem do caminho até ao Casal. Nem me lembro muito bem do que se passou lá, só me lembro do Miguel a gritar “Foge que o filho da puta vai-me…” um tiro cortou-lhe a palavra e desatei a correr. Não queria saber o que estava ali, já fazia um esforço suficiente para não cair enquanto corria Casal abaixo por entre sombras estranhas e montes de lixo acumulado e os tropeções que dava em mim mesmo e no calcetado irregular.


Só quando cheguei a Alcântara-Terra é que me apercebi que o Miguel tinha o dinheiro todo. Na altura pensei “Cabrão de merda.”, mas o que me saiu da boca foi um “Raios part’ó dealer”.” O meu pensamento era fugir. Se antes queria fugir, agora mais motivos tinha. O medo impelia-me e nem me lembrei que, no estado em que eu estava, se me quisessem já me tinham. Segui para a Rocha Conde de Óbidos. Estavam a descarregar um barco. Fiquei ali o que restava da noite toda a olhá-los. Quando, a meio da madrugada acabaram, aproveitei uma distracção e entrei à socapa no barco. Não queria ser um clandestino e dirigi-me ao capitão. Não foi difícil de convencê-lo a deixar-me seguir a bordo do barco. Não queria saber a minha história desde que eu trabalhasse bem. Perguntei-lhe para onde ia e disse-me que tinha negócios a tratar em Barcelona. Era longe, agradava-me!