quinta-feira, janeiro 29, 2015

Heading for disaster #000

Enquanto dançávamos, ela inclinou a cabeça por uns momentos. A sua mão largou o meu ombro e foi apanhar os cabelos para trás, descobrindo o seu pescoço como um convite. Tive uma estranha sensação dos caninos a crescerem. Era como se ela me estivesse a convidar.

Podia mordê-la oferecendo-lhe assim uma imortalidade num momento, ou retirando-lhe até a última gota de sangue, para saciar as minhas necessidades, sentindo-a depois desfalecer em meus braços. Porém não sou vampiro.

Podia beijá-la oferecendo-lhe assim uma imortalidade num momento, ou retirando-lhe até a última gota de amor, para saciar as minhas necessidades, sentindo-a depois desfalecer em meus braços. Porém ...

domingo, janeiro 25, 2015

(In)consciente


Capítulo anterior:
- Bom dia senhor taxista, hospital de São José por favor!
- Bom dia meninas, com certeza, ele precisa de vocês!
As irmãs, arrepiadas, seguiram a viagem caladas como a cal.
- Chegámos!
- Quanto foi a corrida? - solta Lúcia.
- Nada menina! Fiquem em saúde.
- Mas... - Aurora acotovelou a irmã - muito obrigado! - e saíram do táxi à porta das urgências.
- O que foi aquilo Aurora, como sabia o taxista? - Lúcia sentiu o mistério a adensar-se sobre todos os acontecimentos.
- Calma irmã. Lembras-te do telefonema do teu sobrinho?
- Lembro! O que tem?
- Ele tem alguns conhecimentos... uma longa história!
- Outra vez essa desculpa...
- Depois explico, não é fácil, é complexa, não dá para explicar agora....

As irmãs tinham chegado ao destino mas um estranho deja-vu apertou o frágil coração de Lúcia - como se tivesse viajado no tempo, quando acompanhou o corpo frio da avó à morgue - uma gotícula salgada escorreu-lhe pelo rosto e sorriu, contrariamente à recordação, a luz refractou esperança.

- Irmã, vamos entrar? A sombra das lembranças vieram à memória portanto o melhor é procurar algo que nos traga boas energias! - apertou a mão da irmã e puxou-a para dentro do Hospital.

São José era um museu hospitalar. Nas suas paredes cor de rosa, tão desgastadas pelas camadas de tinta, assim como pelas profundas fendas de dor, brotavam fetos e musgo, numa perfeita simbiose arquitectónica. Os azulejos retratavam Portugal, de Todos os Santos à sua edificação, a evolução da medicina ao longo dos séculos e as crenças religiosas.

A recepcionista parecia fria, sofrida de tanta constipação social - congelada no tempo, qualquer gripe emotiva seria convertida em morgue certa, mas ainda assim Lúcia tentou a sua sorte.

- Cara senhora, talvez nos consiga ajudar. A enfermeira Maria ainda está no seu turno?
- A enfermeira Maria... sabe o apelido?
- Maria Augusta, salvo erro.
- Claro, é a nossa chefe de enfermaria. Em que posso ajudar?
- Gostaríamos de falar um minuto com ela.
- Devo invocar quem?
- Lúcia.
- Lúcia, quê?
- Lúcia Lisboa.
- Bonito apelido!
- Não é o meu apelido é como ela me conhece.
- Como queira, vou ligar-lhe, um momento por favor.
- "Enfermeira Maria, está aqui uma senhora que queria ter um minuto do seu tempo... chama-se Lúcia Lisboa... eu indico. Certo. Obrigada. Com a sua licença." - a enfermeira Maria vem já ao vosso encontro. Entrem na sala à vossa direita e aguardem por favor.
- Muito obrigada senhora.
- Não é senhora, é Conceição - e sorriu, pela primeira vez desde que ali chegaram as desconhecidas.
- Obrigada Conceição, um prazer.

A noventa graus estava uma porta com a placa, "Entrada proibida a estranhos", desgastada pelo tempo. As estranhas entraram numa sala com ar de cafeteria improvisada, pequeno balcão, algumas mesas de tampo de mármore e cadeiras de escola básica.

- Sentamos irmã? - Avançou Aurora.
- Sim, sentamos mas espera aqui que eu vou ali apanhar qualquer coisa para esquentar estes lábios frios. Duas bicas?
- Boa ideia! Sim, acompanhada com uma nata, por favor!
- Claro, duas! - e esboçou um sorriso de carinho.

As duas irmãs esperaram pouco tempo, após uns breves cinco minutos, ainda Aurora não tivera tempo para dar a segunda trinca no seu pastel de nata, ouviu-se no extremo oposto da sala uma voz familiar:

- Lisboa, há quanto tempo! Creio que seja a tua famosa irmã mais velha? - dirigiu-se a Lúcia com um sorriso na face e um brilho lacrimejante no olhar.

Maria era uma bela enfermeira, bem conservada, com curvas proporcionais, olhos de mel, cabelo preto liso, sardas ténues sobre a pele branca e lábios finos como pequenas gomas de tangerina. Apesar de dois anos mais velha foram outrora grandes amigas e confidentes na adolescência. Só há cerca de três anos é que congelaram a relação por causa de um conflito amoroso.

- Olá Maria, sei que não me tens visto ultimamente... Andei desaparecida. Precisei de me afastar para me conhecer melhor. A última vez que tivemos juntas foi há três anos?
- Sim, foi... por causa do João, desculpa. A culpa foi minha, devia ter percebido que ele ainda estava no teu coração. Devo dizer-te algo que não me deixaste na altura...
- Culpa minha por me ter desligado dessa grande amizade. Aquele rapaz não merecia tanto. O meu coração descobriu agora a verdadeira essência, na altura andava sem rumo e qualquer coisa me servia como acervo para o meu conforto emocional. Mas conta-me...
- Hum... pois bem, o João... ele era aquilo que tu sabes - um belo prato - e deixei-o assim que percebi que te tinha magoado. Achava que ele já não te dizia nada desde mais nova, desculpa. Tentei contar-te mas nunca mais quiseste conversar e acabei por desistir. Fico feliz por saber que agora encontraste o teu fio condutor. Conheço-o?
- O meu fio condutor... quer dizer, encontrei-o, perdi-o e entretanto soube que está aqui hospitalizado... uma grande história, terei oportunidade de contar pormenores. Ele foi espancado e trazido para cá pelo meu sobrinho.
- O Marco é teu sobrinho? Pois é, tu tinhas um sobrinho... filho da Aurora, agora faz sentido.
- Sim, é o Marco mas como tu o conheceste?
- Conhece o meu filho? Ele nunca me falou de si?! - rematou Aurora.
- Conheci-o após me ter afastado da Lúcia. Por coincidência comecei a dar-me mais com ele desde que ocasionalmente começou trazer pessoas para a enfermaria. É um bom amigo e um bom samaritano.
- Confirma-se que existe um Marco desconhecido aos meus olhos... mas avante, terei oportunidade de saber mais depois. Num desses internamentos está um jovem adulto chamado Pedro?
- Sim, chegou ontem um Pedro. Está na enfermaria sobre o efeito de fortes sedativos mas deve ter alta ainda hoje ao final do dia.
- Deve ser ele! Posso vê-lo?
- Hum... aquilo do rumo e tal é com este Pedro? Bem, ele está sedado e não deve estar acordado, acompanhem-me.
- Obrigada Maria, fico-te a dever esta. Deixa-me terminar a bica e vamos de seguida - enquanto dava o último trago do café segurou num guardanapo e escreveu: "Vem ter comigo, Rua Morais de Soares, 135 – 2º Esq. Lúcia".
- O que estás a escrever mana? - perguntou Aurora.
- É para o caso dele estar a dormir, não o quero perturbar nem obrigar a nada. Assim deixo um bilhete, se conseguir - sussurrou baixinho - pronta. Vamos?
- Sigam-me por favor.

Nos corredores frios, carregados de azulejos e de escadas de mármore, deambulavam alguns doentes numa insuflação de sofrimento prolongado. Aproximaram-se de uma sala mais arejada, com paredes de pladur, cores juvenis e piso de linóleo.

- Lisboa... desculpa, Lúcia. Nos velhos tempos era assim que te chamava. Chegámos! Hei-lo aqui, espreita pela janela. Como esperava está a dormir. Se quiseres podes entrar por um bocadinho.

Lúcia entrou rapidamente no quarto. Suas pulsações elevaram-se a uma pseudo taquicardia - até sentiu as pálpebras - as pupilas dilataram e lacrimejaram assim que tocou na mão do seu amado. Pedro tinha o rosto negro, uma sutura junto ao lábio e alguns arranhões na testa mas estava vivo. Sentiu-o agitado, murmurando, "Como eu, também sou Pedro", perdido algures num sonho ou pesadelo. Beijou a testa e sussurrou ao ouvido, "E o meu é Lúcia". Procurou pelo casaco, largou no seu bolso o guardanapo dobrado e fechou a porta do quarto.

- Está ferido e um pouco moído mas parece-me que vai ficar bem. Havemos de combinar algo Maria. Prometo, sem ressentimentos. Temos muita conversa para pôr em dia. Ahh... e podes chamar-me Lisboa - e sorriu enquanto lhe entregava o seu contacto - é o meu número de telemóvel.
- Ficará sim, eu tomo conta dele até sair. Concordo querida Lisboa e terei muito gosto, anota o meu: 94 600 56 66.
- Obrigada Maria, mesmo obrigada e cuida bem dele! Não precisas de avisar que estive cá, ele seguirá o seu trilho, espero - respirou fundo, estava ansiosa e despediu-se com dois beijinhos.
- Prazer Aurora, haveremos de falar noutras ocasiões. Beijinhos.
- Pois havemos Maria. E já sabe onde me encontrar. Beijinhos.

As irmãs afastaram-se numa passada lenta, de quem alimenta a esperança em cumplicidade. Maria regressou ao quarto. Pedro acordou no preciso momento em que a enfermeira encostou a porta:

"Como está Dr. Pedro? Sente-se bem?"