terça-feira, dezembro 21, 2004

Desejo...

Paixão arrebatadora e quente
Que incontrolável me invade
Torna o meu olhar ardente
E cheio de desejo, beijando-te
Com insana vontade...

Mãos trémulas e desejosas
Percorrem teu corpo tentador
Determinadas, embora ansiosas
Por uma carícia ardente...
Em mim, todo o teu calor!

Os teus beijos me envolvem
Lábios húmidos, insaciáveis
Que ao paraíso me devolvem...
Horas parecendo segundos
Cheios de prazeres inigualáveis...

Dois corpos que se abraçam
Unidos num ritual de amor
Dois pulsares que se entrelaçam
Num nó, momentaneamente, eterno...
Clímax de prazer entontecedor!

Sinto-te, sentes-me...
Dois seres, sentindo como um só...

quinta-feira, dezembro 09, 2004

Opostos

Gosto de ver o sol a se deitar,
O céu dourado ao entardecer.
Em pensamentos me perder
Antes de na noite navegar.

Observas o sol nascente
Que começa a manhã a tingir.
O tempo parece fugir...
De ti, eternamente...

Lentamente começo a despertar,
O quotidiano aperta-me feroz.
Mais um dia, quiçá atroz,
Destes em que me pareço arrastar...

Chegas a casa, cais na cama,
Fechas os olhos, procuras dormir...
O corpo começa a fugir
No entorpecimento que te chama.

Será que alguma vez te encontrei?
Será que alguma vez chamaste por mim?
Mundos opostos,
Verdades suspensas...
Na igualdade me despenhei,
Nas coincidências fiquei assim.
Cansei-me de pressupostos,
Mudei as minhas crenças...
E sem saber onde parei
Espero que do nada... surja um fim.

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Inconsciente

“A razão chama por mim,

Na realidade do cansaço,

Na cama que desfaço,

Acaba mais um dia, enfim…”


Pelas ruas semi-vidradas do inconsciente vibram vozes nas janelas, nelas sorriem pessoas alegremente. São como tons de cristal a organizar a minha orquestra mental.
A melancolia, numa janelinha ao fundo, quebra a organização musical. Partem-se vidros em infinitos estilhaços como refugiando-se na sua pequenez. A janelinha aproxima-se transformando a melancolia em malvadez. Já não há pessoas a sorrir, apenas rostos a partir, escondendo-se do mundo, tentando refugiar-se nas suas origens, mas a dor acaba por derrotar-me a mim também.

“O coração olha para ti,

Na imaginação da dor,

Na cama uma chama de amor,

Acabo mais uma noite, sem ti…”

Ecos relembram-me do mundo imaginário, como um aviso. Talvez nem tudo seja imaginário, talvez nem tudo seja um sonho, talvez algum pessimismo… Oriento-me em direcção ao que não sou, ao que não acredito. O medo persegue-me e não desaparece… Tudo em mim enlouquece…


“Na escuridão olho pelo mundo,

E não o vejo,

Com um desejo

De querer sair do fundo…”

Sem nada a apoiar meu inconsciente tento adormecer novamente.

quinta-feira, dezembro 02, 2004

Contos do Exílio - O Regresso, parte II: Encontro (cont.)

Exilado... Vêm-lhe à cabeça imagens de uma aldeia, um grupo de adultos a olhar para ele, um grupo de crianças na brincadeira, uma caçada na floresta! Exilado... A palavra faz badalar um sino na sua cabeça, acorda nele a memória do antigamente, memória essa que lhe refresca a alma como se da brisa do mar, na orla do Grande Mar se tratasse!

-Levanta-te Filho da Montanha! Aqueles que um dia chamaste pais esquecem-se de ti, a cada dia que passa e tu, preso neste teu exílio do mundo, acentuas o esquecimento, esqueces-te de quem és, de quem foste e de quem tens de ser! Levanta-te que não és nenhuma criatura da floresta, não te vergues como elas se vergam perante ti.

Toda e cada palavra que o velho pronunciava, despertavam-no para a sua humanidade. Sentia-se agora como não se sentia havia já muitas Viagens... Sentia-se um Homem Novo, sentia que tinha acabado de nascer só que o mundo lá fora não era estranho, só os sentimentos! Levantou-se e caminhou em direcção ao velho, que entretanto não mexera mais nenhum músculo para além dos necessários para levantar levemente um dos cantos da boca, gesto que lhe acentuava as muitas rugas do rosto.

-Tenho fome... Tenho sede... - balbuciou, a sua voz entaramelada dada as poucas palavras que havia pronunciado desde que chegara à floresta. Parecia-lhe que era a primeira vez, desde sempre, que se dirigia a alguém. Não andava longe desta realidade uma vez que essa última vez havia já sido apagada da sua memória e certamente não lhe havia transmitido a satisfação que este encontro lhe trazia.

-Acredito, Filho da Montanha, Exilado do teu povo, Vítima Injustiçada. Senta-te comigo junto do fogo, trouxe-te comida e vestes. - dizendo isto sentou-se. O Exilado sentou-se ao seu lado. Sentia agora na face o ar quente que emanava da fogueira. Comeu do pão que o velho trazia, saciando-se como se de um animal de grande porte se tratasse. De seguida bebeu do cantil do velho, que lhe assegurava que era água, no entanto não havia água em toda a floresta que fosse tão refrescante e que mais do que saciar a sede, aliviava os pensamentos e parecia limpá-lo por dentro. Quando acabou o velho ordenou-lhe que dormisse ali no chão, junto à fogueira. "A manhã traz consigo um novo dia. Que estejas recuperado para o enfrentares e à tua nova vida."

terça-feira, novembro 23, 2004

Contos do Exílio - O Regresso, Parte II: Encontro

Aquela floresta era-lhe tão familiar como se parte integrante de si mesmo, um mero prolongamento do seu ser. Cada galho, cada raíz eram-lhe tão familiares como se fossem os seus dedos e as suas mãos. Conhecia cada árvore como os seus próprios braços, o ribeiro saudava-o todas as manhãs e as grutas abriam-se ao pôr-do-sol, para que nelas repousasse em paz. Apesar de tudo isso, neste momento caminhava hesitante!...

Era um sentimento novo e estranho. Ele, que se tornara parte das lendas sobre seres fantásticos e tenebrosos, caminhava hesitante. Ele que combatera alcateias de lobos e era visto como devorador de Homem e Animal, estava agora no lugar da presa, caminhando hesitante e receoso, rumo a uma chama que ardia tão longe e no entanto tão perto. Cada vez mais perto...

Subitamente uma forte lufada de ar da noite tapou-lhe a vista com os seus próprios cabelos desgrenhados. O seu instinto de caçador fê-lo correr para a sua esquerda e agachar-se na erva alta que aí brotava. Havia decidido avançar sobre a fogueira pelo lado contrário àquele em que antes de encontrara, de modo a evitar que o vento levasse o seu cheiro até quem quer que estivesse junto da fogueira. Colado ao chão começou então a rastejar. Quando finalmente se encontrava ao alcance da vista de quem quer que estivesse junto da fogueira, reparou que apenas um velho se sentava, de costas voltadas para ele, junto ao lume onde assava um pequeno animal. Atrás dele, pousados no chão, repousavam dois cajados e ao seu lado havia uma pequena trouxa, que mais não parecia do que um amontoado de trapos...

A Fome!... Esse sentimento escondido, esse desejo de pão, essa vontade de pegar numa vara, essa sensação que lhe acelera a pulsação, lhe retesa os músculos, que o isola de todo o mundo, menos daquele que os seus olhos conseguem captar. Já há muitas Viagens que não a sentia vibrar em si, mas a vista dos cajados acordou esse sentimento escondido nos recantos do seu ser onde a humanidade hibernava.

Imagens de uma vara partida, um grupo com tochas, um guerreiro vestido de verde, memórias passadas e imagens futuras, tudo lhe atravessava a mente enquanto contemplava o velho, que se encontrava agora de pé e a olhar atentamente para o local em que se encontrava.

-Levanta-te ó Exilado! O teu futuro começa hoje e não lhe poderás escapar! - a voz do velho ressoou pelas copas das árvores. Era uma voz cavernosa e ninguém diria que um velho de aspecto tão frágil seria capaz de fazer vibrar o meio em seu redor daquela forma. Aquelas palavras gelaram-lhe o sangue. Gelava-o não tanto a forma como haviam sido ditas, mas sim pelo que diziam e pelo que significavam. Aquele velho sabia onde ele estava! O velho revelara saber ainda algo mais, revelara que a sua humanidade perdida, não lhe era de todo desconhecida!
(continua)

quarta-feira, novembro 17, 2004

Criança

Sonho com naves flamejantes
extraterrestres e humanos
Sonho com prados verdejantes
flores e nuvens num céu azul
Sonho com histórias de encantar
princesas e dragões para escravizar
Sonho com lutas terriveis
em que saio sempre vitorioso
Sonho com corridas
em que sou sempre o mais rápido

Sonho, sonho, sonho... em ser criança outra vez e não me preocupar com o mundo

segunda-feira, novembro 15, 2004

“E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço”
Jorge de Sena

Encontrar-nos-emos noutros lugares,
Estranhos e novos
Plenos de sentido
Num outro tempo,
Em que o momento é o certo
À espera de ser vivido

Encontrar-nos-emos noutros lugares,
Em que o hoje é diferente
E as distâncias são as mesmas
E a comunhão se faz sentir
E o olhar finalmente
se encontra

Encontrar-nos-emos noutros lugares
Já que separados,
Só resta a esperança
Que esta rotina rompida
Toque o espírito
E nos faça crer

Encontrar-nos-emos noutros lugares
Convictos que o destino
Que actuou assim,
Firme no seu propósito,
O fez porque hoje não teria sentido
O que amanhã fará

Encontrar-nos-emos...

segunda-feira, novembro 08, 2004

Contos do Exílio - O Regresso, Parte I: Despertar

A noite cai, escura e pesada como se anunciasse a todos os seres vivos a total ausência de amanhã.
A noite cai e acorda nele essa sede adormecida. Sentado ali na clareira, sem a presença da lua, sente despertar em si toda uma fúria acumulada ao longo dos tempos. Na sua mente desfilam imagens que não conhece, imagens de uma falésia, imagens de pessoas, imagens todas elas de uma outra vida passada.
"Abre os olhos e contempla o Céu!"
Uma voz que ressoa dentro da sua cabeça. Fumo! O cheiro áspero de pinho queimado invade-lhe as narinas e o crepitar de uma fogueira ao longe, ressoa através das árvores. Sente perigo, um perigo que se aproxima!... Reside já há muito tempo deste lado da montanha, tempo suficiente para saber que ninguém se aventura para este lado da montanha com o ânimo tão leve que faça uma fogueira, tão leve que revele a sua presença nas imediações. O tempo ensinou-lhe que perseguir os incautos era a melhor forma de adquirir roupas e provisões, pois mais cedo ou mais tarde a floresta acabaria por cobrar-lhes algo mais do que um mero pagamento pela travessia nunca terminada. A fogueira revelava assim ou alguém muito confiante, um agressor, ou mais um visitante incauto, uma vítima.
A Sede voltou, secando-lhe a garganta! Sentia esse apelo, esse aperto, essa vontade imensa de falar com alguém, não um animal, não o ribeiro, não a Floresta, mas alguém, um semelhante. Sentia esse aperto de uma forma nunca antes sentida e o cheiro a pinho queimado intensificava-o a cada instante.
Levantou-se, sem se aperceber, e começou a caminhar desse fogacho intermitente do outro lado da grande clareira onde dormia já há três noites. Caminhava hesitantemente, sem se dar conta que cada passo representava um regresso à humanidade perdida, o despertar para uma nova vida.

quinta-feira, outubro 28, 2004

Tonan, o Barbariano - 4ª Parte

"Olha qui coisa tão linda, tão cheia dji graça, é a não-sei-quantas qui coiso, a mina qui passa, é a coisa mai linda qu'eu já vi passaaar..."
Assim trauteava o cabeçudo aprendiz de feiticeiro aquela velha música das praias de Titiloqui, o país mais solarengo do grande continente de Takar. Sob domínio Pharpal, podia não ter a aura de sofisticação e requinte de Létis, a sua homóloga Tartaglionesa, mas compensava-o com o seu clima quente e a sua exótica fauna local. Por assim dizer...
O jovem fazia esvoaçar a túnica encardida enquanto saltitava pelo carreiro que atravessava o bucólico bosque, degustando aquelas saudosas recordações da sua viagem de fim de curso, a lembrança daqueles cálidos encontros com as jovens «titilôcas» (e também as não muito jovens, diga-se de passagem) ainda acariciando a sua memória... Ao ponto de ter de compor, dissimuladamente, uma prega no manto.
Não havia passado muito tempo desde que concluira o curso de Iniciação às Artes Místicas e Afins na Faculdade de Ciências Mágicas, nas soalheiras encostas de Capanova, uma localidade no pequeno país de Gurtapol.
Bom, não era o mesmo que um canudo em Iniciação às Artes Arcanas, Marciais e Outras Que Tais, na mítica Cidade-Fortaleza-Universidade de Oxifarad, nas agrestes montanhas de Shrlombo-Tim, mas já era alguma coisa. Era uma rampa para se lançar em estágios mais elaborados, e quiçá até um Mestrado!
Pelo menos fora o que lhe garantira o velho Professor Kibomba, o seu tutor durante as árduas duas semanas de curso.
"Tu lembra di qui este curso, apesar di útil, não chegará pra desenrascar! Lembra di qui ainda tem qui ler muita folha de chá e tripa de saguim pra chegar à unha do pé di qualquer grandi sábio! Tu lembra ainda de que......
...Chi, esqueci!"
Fora a última vez que vira o velho sábio antes deste desaparecer misteriosamente para destino incerto, com a igualmente incógnita quantia que cobrara como propina aos alunos inscritos (sim, todos os nove! Os Nove? Hum... Será que?... Nahhh)
Mas tinha o seu canudo! E apesar de ter perdido a conta ao número de vezes que lhe bateram a porta na cara, lhe chamaram "Palhaço!" ou atiraram lama (queria pensar que era lama), nunca desistiu de procurar o seu lugar no conturbado mundo de então.
Até aquele momento. Estava farto. Preferia viver como um eremita porco e sujo na Floresta Negra do que continuar a gramar aquelas merdas.
Olhou para o seu canudo como se fosse um bocado de papel higiénico várias vezes reutilisado, e lançou-o com um grito de raiva para lá das árvores que o rodeavam...
...até que o ouviu embater em algo que, julgara, seria grande e pesado. Não pelo ruído que o canudo fizera ao bater. Antes pelo tamanho das árvores que começaram a ser arrancadas na curta distância que o separava daquilo... A facilidade com que eram lançadas vários metros acima e além da sua cabeça também não o tranquilizava.
O terror que dele se apossara já lhe tinha ensopado as vestes quando se encontrou, finalmente, frente a frente com a temível criatura. Era mais baixa do que estava à espera, mas isso não queria dizer nada. Tinha um aspecto que feria só de olhar, e do cheiro nem falar. Tinha uns desenhos no corpo que faziam lembrar o rapaz de umas histórias que ouvira enquanto criança, de uns vagabundos meio tresloucados que gostavam de andar à bulha e de apanhar grandes bebedeiras...

Sim, só podia ser! Estava a olhar para um Barbariano!

(fim da 4ª Parte)

terça-feira, outubro 26, 2004

Samhain

Nesta noite da morte, a vida vibra
Palpitante e ébria
Imersa na sua própria essência
A roda gira, e uma vez mais
O ciclo perdura
Nada é estanque e imóvel
E na noite da morte
Os que foram, voltam
Para serem celebrados
Para serem perpetuados
E na roda da vida,
E da morte
Nesta noite
As vozes erguem-se
A luz estremece com a brisa
Os fumos esvaem-se
E em comunhão plena
A morte, a vida
Num ciclo eterno
Coincidem
Na noite escura

segunda-feira, outubro 18, 2004

Sentido "Escaldante"

Um toque de paixão
Vibrou naquela noite
Numa música celestial.
Fora de controlo
Senti o calor invadir-me,
Sem sentido.
Fechei os olhos
Possuindo a imaginação...
Algo chamava por mim,
Um toque de razão!?
Não!!!
Algo mais chamava por mim,
Minha mão sentia calor,
Meus lábios sentiam o sabor,
Meu nariz sentia seu odor,
Era seu, só seu…
Agachei-me sobre seus pés
Beijei-os… E fui subindo…
Seu desenho corporal
Reluzia no meu inconsciente…
Curvas de prazer sentindo o calor,
Escondidas no sabor,
Satisfeitas pela dor.
Tudo nela era mágico...
Tudo nela era meu, só meu…
Mas ao abrir os olhos
Tudo o que via nela se perdeu…

sábado, outubro 16, 2004

Posso sentir o vento que sopra lá fora
As árvores estremecem
Amarguradas,
Presas na imobilidade
Eu também estremeço,
E a prisão em que me encerras
Pior que uma raiz presa no solo
Leva-me a vida e a alma

Posso sentir o frio que esta noite de Inverno traz
Um frio cortante
Uma lâmina, uma navalha
Que marca os seres
Com traços sanguinolentos
E assim, sou eu
Marcado, traçado
Pelas tuas mãos

E no escuro,
Choro e sussurro sozinho
Pois as dores que me infliges
E o cárcere em que me fechas
Não são mais que belas quimeras
Ao imaginar que te perdes
Um dia
Para mim...

segunda-feira, outubro 11, 2004

Outono

Mágica a voz que caminha por dentro da natureza, grave, aguda, por vez harmoniosa outras vezes melancólica, nem sempre a mesma mas a mesma voltará a ser…
Suas notas libertam folhas das árvores, que por vezes choram... disfarçando as feridas do tempo, entoando seu som estaladiço em gritos de revolta.
Mais um ciclo findou, não foi a vida que acabou, pois ainda agora tudo começou.

quarta-feira, agosto 25, 2004

Photomaton

Encerro a graciosidade do gesto com um toque, e de repente a intemporalidade pertence-me... sou eu o dono do momento, aquele que já se encontra perdido. E os dias passam, e o tempo avança, e eu, ladrão das horas, capturo os gestos e as frases e os sorrisos que se tornam meus. E todos os que se cruzam com o meu gesto, pertencem-me, imobilizando a sua essência numa forma imperceptível ao mundo e ao tempo. E eu, possuidor das memórias, revejo as que não tive, possuindo as vidas que não vivi, saboreando esses escassos instantes capturados como se fossem meus.

segunda-feira, agosto 16, 2004

Tonan, o Barbariano - 3ª Parte

A estrada de terra batida encontrava-se menos poeirenta do que o costume. Normalmente era na época das monções (em que a vegetação da Floresta Negra se mostrava ainda mais encaracolada e propensa a piadas de mau gosto do que o costume) que as paupérrimas vias de trânsito se encontravam alagadas, transformando-se em rios de lama mais propícios à navegação do que às caravanas de carroça.
No entanto estavamos a meio da estação seca. A estrada estava ensopada, sim, mas não era de água. Não, era de...
- Sangue! aArrGhhh!!
Uma cabeça decepada voou pelo ar, indo cair junto de uma toca de répteis que, agradecidos, começaram imediatamente a descarnar a iguaria.
O grupo de soldados recuou, assustado, enquanto o corpo decapitado do seu capitão escorregava para o chão. Na lama avermelhada jaziam já metade dos seus companheiros, ou o que restava deles.
No meio dos cadáveres estava a figura que lançara o grito.
Tonan, o último dos Gu'Man, podia não saber contar os dedos da própria mão direita ou distinguir um verso arcano de uma esgichadela de babuíno com disenteria, mas lá que era um ás no que se tratava de cortar, mutilar, torturar, rasgar e trincar as carnes alheias, isso era. E com que brio Tonan abria o peito de um soldado só para lhe arrancar o coração e o meter na boca de um segundo, este empalado na lança com um terceiro! Para não falar dos que agonizavam e rodavam no espeto, sem braços nem pernas, enquanto o lume brando lhes prolongava o sofrimento...
Era com estes mimos que Tonan, esse Barbariano, presenteava os que tinham a infelicidade de o encontrar no caminho, fossem monjes estóicos, velhos mendigos, virgens imaculadas ou até bebés de colo (irra, que ainda vou preso!).
O que restava do grupo de soldados debandou em pânico, correndo em todas as direcções até chocar contra uma árvore ou cair de algum penhasco.
Tonan ignorou a fuga e começou a tentar pensar no que iria fazer a seguir.
Não conseguiu.

(fim da 3ª Parte)

Tonan, o Barbariano - 2ª Parte

Despontava um novo dia na Floresta Negra, o que era o mesmo que dizer porra nenhuma. Era um pardieiro sem o mínimo interesse, cuja vegetação encaracolada se repetia monotonamente até ao horizonte, para desespero dos amantes de discrições tolkianas de paisagens exuberantes.
Era por entre este esgoto botânico que Tonan se movimentava, ágil e rápido como uma lesma paralítica, tropeçando em cada galho e caindo em cada buraco. Ao fim da enésima esfoladela, Tonan sacudiu o pó do seu corpo tatuado - invariavelmente com figuras de mulheres nuas em poses mais que chocantes e outros arabescos de duvidosa moralidade - ao mesmo tempo que pensava na distância que o separava ainda da civilização.
Não que ansiasse por água corrente ou comida no prazo de validade, tais bens nada diziam a Tonan: eram o refúgio dos fracos.
Não, o que Tonan desejava era SANGUE! Cortar as orelhas daqueles aprumadinhos da cidade, violar-lhes as mulheres, fritar-lhes os animais de estimação em óleo de cinco dias... Isso tudo, por esta ordem ou até ao mesmo tempo, sim, isso tudo Tonan lhes faria, pois tal não era mais do que o retrato fiel da sua natureza animalesca.
A natureza de um verdadeiro Barbariano.

(fim da 2ª Parte)

segunda-feira, agosto 09, 2004

As minhas palavras

Na dor da ausência, encontro as palavras, as formas que, encerram os sentidos. E é nestas palavras, repletas, que desvendo o meu ser. Só na sua perfeição física me encontro, e me perco, na plenitude dos sons talhados, das palavras que ficaram por proferir. Por isso escrevo, e exponho as mágoas e os desejos, os que ficaram por concretizar no ontem perdido. E na frugalidade das horas, estes tomam figura, tornando real o gesto nunca traçado. E o tempo descerra-se, assim devagar, e a ilusão de realidade que me encerra, vai tornando existentes estas palavras que aguardo.

sexta-feira, julho 30, 2004

Contos do Exílio - O Acordar

Acordei! Pelo menos assim o creio...
Alguns sentidos pelo menos tenho a certeza que acordaram em definitivo! Ouço um gotejar próximo e ao mesmo tempo distante. Ouço-o como se estivesse aqui, ao meu lado, em enorme lago com árvores verdejantes em seu redor, donde pinga a água para a grande massa de água. Sinto-o tão próximo que estranho o tempo que me arrasto até essa pequena poça de água fria e de sabor barrento.
Abro os olhos e vejo ainda a escuridão! Olho em meu redor mas tudo o que vejo é breu, apenas esse manto escuro me devolve o olhar frio... Levo as mãos à vista e sinto as minhas unhas a arranharem-me as pálpebras. Estranho! Seria capaz de assegurar que parecem ter crescido apenas para a frente e durante meses, como se o meu sono tivesse sido um sono prolongado... Procuro pôr-me de pé, mas tal tarefa revela-se impossível, doem-me em demasia as pernas adormecidas e torpes. Tento sentir em meu redor o local onde estou. Chão macio, árvores espalhadas em redor, uma brisa que me bate suavemente no rosto e um calor na face esuqerda que atribuo ao Sol.
Volto a tentar abrir os olhos, mas desta vez a luz magoa-me profundamente e rapidamente os fecho! Não estou cego, mas tenho a noçao que novas tentativas rapidamente conduzirão a esse estado. Tento abrir os olhos progressivamente, mas nem assim... O tempo vai passando e vou-me esforçando. Uma eternidade depois, quando o sol me bate no rosto já de frente consigo finalmente abrir os olhos, contemplando esse espectáculo de infinita beleza: o pôr-do-sol.
Tão belo, tão simples... Parece que é um acontecimento novo para mim, algo que nunca tinha presenciado, algo que... me dá um novo alento, algo que me grita cá dentro que há todo um mundo para eu descobrir!
Então alcança-me uma outra sensação: a fome! Uma sensação violenta que me assalta de rompante, fazendo-me agarrar ao estômago e curvar-me de dor... Com esse movimento sou obrigado a olhar os meu braços sujos de terra, olho as minhas mãos e vejo unhas parecidas com garras, longas e ligeiramente curvadas nas extremidades, aguçadas e afiadas como que para rasgar, unhas que cresceram e não se entranharam na carne, unhas como se pertencessem a um animal! A Fome! Tenho de a saciar... Tenho de encontrar alimentos... Tenho...
Um monte de animais mortos repousa no local onde despertei os sentidos, uns metros mais atrás de mim. Um monte de coelhos e pequenas aves, todos empilhados como se ali houvessem sido deixados para me alimentar.
Procuro colocar-me de pé, penso que já o consigo, mas não passa de uma ilusão. Com a violência com que a Fome me assaltou mal me consigo mexer e tudo o que faço é contorcer-me em direcção ao alimento. Quando enfim chego junto deles não penso e lanço-me com avidez à comida ali colocada, deglutindo sofregamente todas aquelas carnes, cuspindo penas e pêlos. No final, sentido-me já mais forte consigo enfim colocar-me de pé.
Vejo, detrás do Monte um enorme clarão. É certamente o Fogo da Despedida, que marca o final do Acampamento de Verão, a Tribo está de partida do Grande Vale e é então que me assola a ânsia de partir para junto deles. A memória! A memória de tudo assola-me de novo, as imagens da violência e da expulsão, as palavras proferidas no julgamento e as traições ocorridas. Sinto-me partir por dentro até que o último raio de Sol seca as lágrimas que me começam a escorrer pela cara.
A memória é dolorosa mas esse raio de Sol ilumina no meu espírito outra memória. A do Concelho dos Anciãos, a do nome de Exilado e do futuro que me está reservado. É agora que o nome de Exilado faz sentido. É agora que começa o meu futuro, que a ninguém revelei e que só agora percebo. Sou pois agora o Exilado. Estou, finalmente, acordado.

Fantasias

Abriu a janela do seu quarto, o sol de inverno desfez-se no seu corpo nu e arrepiado pelo frio. O vento que provinha de norte desviava-se das suas formas como se temesse formar uma tempestade de prazer. Eram sopros de memórias e antigas fantasias, erguidas pelo suor do sol de verão. Testemunhos calados no silêncio de um mundo meio morto pelo medo das noites, das pessoas, da vida...
Sentimentos que a cada passo pela casa iam crescendo, como quem teme a solidão.
No corpo nu e gelado vestiu umas roupas justas e saiu de casa. No horizonte da rua, o branco misturava-se com o azul do céu, estava frio mas nem por isso as roupas que usava eram apropriadas. Sua alma aquecia-o, mas era o desepero e a tristeza que o orientava. Caminhou até não conseguir mais e deitou-se no chão. Já fraco e com frio dobrou-se sobre si mesmo, mas nem por isso temia o frio, o seu desespero ultrapassava qualquer limite físico. O congelar da razão e o sentimento de culpa deixaram-no a chorar, pensava ser forte e resistir à conduta natural do seu ser, pensava que suportaria um mundo sem sentimentos, pensava que a vida era feita de sonhos e fantasias, pensava ser capaz de tudo, de lutar em busca do prazer... Mas nessa manhã não foi capaz de lutar por si...

domingo, julho 25, 2004

Estranha noite... (FIM)

Ficou pensativo, ao mesmo tempo que estava com curiosidade uma sensação de medo tomou conta dele, os pêlos dos braços ergueram-se perpendicularmente à pele, o coração começou a bater mais depressa e as pupilas dilataram. Ficou parado por uns instantes como se toda a sua energia tivesse sido deslocada para a periferia do seu corpo, por uns momentos o seu corpo reluziu como um raio e desapareceu...

Deu por si dentro da mansão, não tinha percebido como tinha entrado mas o medo tinha dado lugar a uma sensação de paz interior.
Estava na entrada da mansão, a entrada era enorme, o chão de mármore brilhante reflectia as pinturas do tecto, as paredes eram igualmente de pedra cinzenta e robusta, ao centro havia uma escadaria de pedra, largas e em curva. De cada lado da entrada havia um corredor comprido que era iluminado por uma janela ao fundo.

Por uns instantes sentiu-se perdido, mas uma voz dentro da sua cabeça disse para subir as escadas e ele subiu. Já no 1º andar foi dar a um corredor igualmente comprido e iluminado por uma janela ao fundo e com várias portas, ele contou sete. A voz continuava a indicar-lhe o caminho e ele continou acabando por entrar na sétima porta. Abriu a porta mas lá dentro não havia janelas e não via nada, apenas via aquilo que a luz do corredor permitia, o chão era de madeira negra. Entrou à mesma e fechou a porta, a voz tinha-lhe dito que quando fechasse a porta tudo se iluminaria, e assim foi. Na sala não havia um único objecto e esta não parecia ter fim, a porta tinha desaparecio, no horizonte via uma cor cinzenta e um tecto cinzento, ambos com a sensação de infinito, o chão tinha dado origem a um tapete azul que se estendia pelo horizonte da sua visão. Por uns momentos sentiu-se perdido, mas a voz falou-lhe de novo, e disse para ele fechar os olhos e guiar-se pelo seu novo sexto sentido. A voz era suave como uma criança, meiga como uma mulher, mas ao mesmo tempo tranquilizadora uma mãe. Ele não sabia qual era o seu novo sentido mas fez o que a voz lhe tinha pedido, e começou a andar arbitrariamente, sentia-se bem com o que ouvia. Continuou a andar e a andar por umas boas horas, até que a voz manda-o parar, e ele pára, nesse momento começou a sentir uma brisa e começa a ouvir relampejar, abriu os olhos e nisto deu conta que já era de noite e estava num penedo com vista para a cidade, e tinha uma criança a segurar a sua mão direita. Ao contrário do que tinha começado a acontecer ele via a criança, uma sensação estranha impediu-o de olhar para seu rosto e continuou a observar arrepiado para a trovoada. A voz falou de novo enquanto começava a cair granizo, por momentos ele sentiu que aquilo fosse um dejá-vu, mas a voz cautelosamente disse-lhe que aquilo que estava a ver era o amanhã... e a criança desapareceu...
Ao levantar-se dá conta que estava noutra dimensão, já não sabia que dia era qual, nem o que tinha que fazer, chamou o empregado e perguntou-lhe:
- Bom dia... Qual foi o último dia em que trovejou?
Ao que ele respondeu admirado:
- Bom Dia Srº Melt. Não me recordo muito bem mas tenho ideia que este ano ainda não trovejou...
Ele agradeceu e mandou-o retirar... Já não via esqueletos!
Nesse momento resolveu telefonar para a protecção civil alarmar que poderia acontecer uma catástrofe nessa noite, eles riram-se, dizendo que não havia dados ciêntificos que apontassem para esse facto.
E nessa noite o pior aconteceu...

quarta-feira, julho 21, 2004

Estranha Noite... (parte2)

Tanto procurou que descobriu uma criança, a criança estava sentada no degrau de uma igreja, ela olhou para cima, na direcção da alma prateada e sorriu, e nisto a sombra caiu, como se ficasse sem asas. O vulto prateado levantou-se e procurou a criança mas ela tinha desaparecido... Com tudo isto Melt acordou, sentia-se pesado, não se recordava de nada do que tinha passado durante a noite. Tomou o pequeno almoço e romou em direcção ao trabalho, de carro conduzido pelo motorista... Ele era patrão de uma firma de robótica, o seu escritório estava situado no prédio mais alto da cidade, e tinha vista para toda ela. Ainda não se tinha apercebido da devastação que tinha ocorrido durante a noite e deu por isso quando reparou no vidro da janela do seu escritório, estava feito em pedaços. Olhou à volta de toda a cidade e reparou que toda ela estava desfeita, não havia telhados nem carros com vidros inteiros. Não se tinha apercebido de nada durante a viagem, porque ela era curta e tinha ido a ler um dos seus livros de poesia. Sentou-se na cadeira a reflectir, não percebia nada... O domingo tinha sido um dia em cheio, tinha conseguido contactar futuros clientes e depois de um almoço calmo foi passear pela cidade, a pé, até começar a sentir aquele mal estar. Já de noite, no regresso a casa, não avistou os simpáticos pássaros que espiavam o enorme jardim de sua casa, situada no bairro mais rico de Rain Maker. Esta sequência de acontecimentos não fazia sentido. Não conseguia concentrar-se e deixou o trabalho para os seus assistentes. Iria voltar ao mesmo restaurante do dia anterior para almoçar... No restaurante não notou nada de anormal e almoçou normalmente, desta vez vendo esqueletos a servirem-no. No caminho de regresso a casa apercebeu-se de uma casa, uma mansão antiga, e gelou. A mansão tinha um jardim enorme na parte da frente, as árvores eram centenárias e estavam rodeadas de musgo, musgo este que era tão espesso como os seus troncos. Decidiu trepar a vedação enferrujada, conforme foi passando pelo jardim foi-se apercebendo que este tinha aspecto de não ser tratado à muito tempo. Ao chegar junto da fachada da mansão notou que esta estava intacta, não tinha janelas partidas e lembrou-se de olhar de novo para o jardim, sim as folhas das árvores estavam perfeitas e a vegetação não parecia ter sido abalada pela devastação. Havia algo estranho ali. Voltou a saltar o portão para se certificar se as casas na periferia estavam destruídas, mas não, aquela era mesmo a única que tinha sido salva...

terça-feira, julho 20, 2004

Contos do Exílio - A Fera (Conclusão)

Um enorme estrondo ouve-se no ar, seguido de uma pancada seca no chão. A fera jaz agora sobre o lado, a poucos dedos de distância dele. No seu olhar vidrado ele consegue ver reflectida a incapacidade de lutar contra a morte. A fera ainda mexe. Tenta arrastar-se para longe, recolher-se ao seu abrigo, evidente como está a certeza da derrota, tentando fugir na esperança vã de se esconder de um poder maior que o seu. Só que a Natureza não lhe deu as armas para lutar contra o mal que lhe abriu o coração e o seu factor de cura não é suficientemente rápido para contrariar a rapidez da morte que se aproxima. Em breve expira pela última vez, ali jazendo no chão.
Estupefacto e revoltado pela agonia do lento expirar do seu adversário, apavorado pela Morte Escondida, começa a correr em círculos na clareira, emitindo os sons guturais, tão característicos dos seus últimos meses na floresta, num misto de exaltação da vitória e pavor por se sentir ameaçado por um inimigo oculto.
-Amigo! Ei amigo! Você está bem? - Uma voz por trás de um arbusto, um ser... como ele! Aproxima-se descontraidamente, coberto por uma estranha carapaça e segurando na mão um pau fumegante. Traz na cara um ar amistoso e um largo sorriso.
-Então amigo? Isso são preparos de se engalfinhar contra um lobo desse tamanho? Você não quer ir até à minha cabana, já ali do outro lado da Grande Clareira?
Porque aponta ele para a Zona da Morte, o local da floresta donde nenhum animal regressa com vida? Quando ele se encontra já próximo é que uma revelação o atinge como uma pedra na cabeça: este é o cheiro do fogo assassino, cujo rumor se espalhou já na floresta, este é o ser responsável pelas mortes misteriosas de animais vigorosos, este é o responsável pelas mortes cobardes, como aquela que acabou de presenciar e a do Grande Lobo há apenas duas luas, este é o animal tido como mais cobarde que a hiena e um prenúncio de morte mais certo que o abutre...
Com todos estes pensamentos na cabeça, não lhe custa saltar para cima do agressor e facilmente partir-lhe o pescoço.

segunda-feira, julho 19, 2004

Contos do Exílio - A Fera (Parte 1)

Olhos nos olhos, os dedos profundamente enterrados na terra macia e os ouvidos alerta, atentos à mínima deslocação de ar, um sinal revelador de algum movimento do ser que o encarava.
Olhos nos olhos, a cabeça ligeiramente descaída, orelhas alerta e todo o pêlo eriçado, todo ele concentrado nesse odor que o vento lhe trazia e que lhe gritava na cabeça uma só palavra: intruso! Respondendo ao apelo da sua Natureza, revela a sua enorme dentadura, uma enorme fileira branca de dentes pontiagudos e afiados, habituados que estão a rasgar a carne das suas vítimas. Ainda como resposta à sua Natureza, começa a emitir esse som gutural característico de todos os canídeos ameaçados, o rosnar...
Os ouvidos trazem-lhe a ameaça da besta. Poderia, diz-lhe o conhecimento da floresta, retirar-se desta área e retornar à sua caverna. Poderia, mas morreria de sede, incapaz de chegar ao ribeiro que fica para lá do território que atravessavs cuidadosamente, até que uma mudança do vento o acabou por revelar ao legítimo proprietário. Não! O único caminho possível é em frente, para lá da fera, para lá das suas próprias capacidades. O rosnar aumenta, sinal que a fera está impaciente, mas não é um lobo jovem, tem a manha e a sagacidade que o passar das luas lhe deu, apurando-lhe o instinto pela sobrevivência.
...Repentinamente a fera ataca! Avança direita a ele em corrida, os enormes dentes arreganhados à procura do tecido mole do pescoço, até que no último instante ele se desvia! A fera fica confusa, mas apercebendo-se que o intruso está agora ainda mais embrenhado no seu território fica furiosa e o seu instinto abandona-a, dando lugar à raiva e à fúria cega que a levam a saltar, para cima do petrificado intruso, com um rugido assassino!...

Estranha noite... (Parte 1)

Caminhava Melt sozinho no seu bairro, quando notou a ausência de aves predadoras naquela noite. Os seus sentidos alarmavam-no, havia algo estranho, uma força desconhecida tinha-se apoderado do seu pensamento. Já não via as pessoas normalmente mas sim esqueletos andantes. Essa visão destorcida provocou nele forte indignação, não saberia qual a fonte desse mal. Dirigiu-se de imediato para casa, para o seu quarto e deitou-se .

Ao cair na cama adormeceu imediatamente, no entanto por detrás de um corpo exausto existia uma força interna vinda dentro de si e nisto seu pensamento exteriorizou-se, uma sombra negra ergue-se da cama e saiu para a rua. Por onde passava lenvantava poeira do chão e por cima de si nascia uma luz vinda do céu. As pessoas que passavam por ele não o viam, apenas sentiam um frio como nunca tinham sentido, viam o rasto de poeira no ar e uma luz azul no céu.
A sombra de negra passeou pelas ruas estreitas daquela cidade rural, deslocando-se para fora da cidade para um monte que a ladeava, e caminhou para o ponto mais alto onde se avistava toda a luz citadina. Subiu para um penedo, levantou as mãos e desenhou um círculo no céu, dando origem a uma trovoada arrasadora que se apoderou da cidade, pedras de granizo do tamanho de ovos partiam telhas e vidros de carros, amolgavam chapa e feriam pessoas. Depois de alguns minutos parou a trovoada e começou a pairar, dos contornos negros da sua sombra surgiram asas nos seus braços, o ceu capuz sobre a cabeça desapareceu e as pernas já se distinguiam uma da outra, toda a sua cor negra desapareceu dando origem a uma cor de prata. E nisto voou, voou sobre a cidade procurando alguma coisa...

sábado, julho 17, 2004

Meditação

   Deitado sobre a minha cama fecho os olhos e concentro-me num só pensamento, olho para dentro e vejo um só ponto branco, começando pálido, tornando-se cada vez mais luminoso e pequeno à medida que canalizo as minhas alegrias, tristezas, ódios e paixões nesse singular objecto. Até então tudo era consciência embora dispersa, desconexa e descontrolada, a mesma consciência que está espalhada pelo cosmos e que agora está focalizada num só ponto e que eu estou a ver, embora não perceba nem esteja minimamente preocupado com esse facto. Num ápice tomo a consciência de tudo como um todo, é tudo tão maravilhosamente belo, não fazia ideia que era assim. Uma agradável corrente eléctrica invade o meu corpo, começando na nuca e alastrando rapidamente até às pontas dos pés....a vida é bela!...é um privilégio estar aqui nem que seja só por este instante....lentamente o pensamento evade-se. Ao fundo começo a ouvir uma voz, primeiro difusa, depois estranhamente familiar....”Anda jantar!!! A comida já está fria”....bem...as nossas mães têm sempre razão...ou quase sempre.

terça-feira, julho 06, 2004

Sangue

Doce e metálico sabor
Invadindo a minha boca
Travo quente e viciante
Dono de um odor enebriante...

Dor sentida mas anestesiada
De um golpe, mordo vorazmente
Uma, duas, mais uma vez
E sorvo o abundante líquido...

Pulsante, bombeado sem parar
Os meus lábios beijando
O prazer que provém da vida
lentamente terminando...

Raiados os meus olhos
Do mesmo que me mata a sede
Prazer, comunhão de dor
Orgia escarlate, festim de morte...

Vítima quase inerte, lívida...
Saciado, ergo-me e concedo
A misericórdia (talvez) divina
Um golpe, um gemido, escuridão...

Energia de Vida roubada
Agora, sendo minha...

segunda-feira, julho 05, 2004

Atrofios

Aconchego-me perante a noite, vestindo seu manto e escondendo-me do brilho dos candeeiros. Passo ante passo, avanço sozinho com os meus pensamentos e vou ao encontro dos teus. Será que tudo o que sonho tem a ver contigo e será que sonhas comigo?
Mergulho na escuridão das ruelas sem medo dos recantos escuros, estou demasiado pensativo para reparar nos olhos dos lobos das ruas das grandes cidades? Meus pensamentos fogem mas eu não os acompanho. Prendo-me nas questões que sei que nunca terão resposta, mas sei que é preferivel assim.
Meus passos são unicos sobre o passeio mas sei que algures sou vigiado, pela policia, pelos ladrões de dinheiro ou de corações, pela lua, por ti, por mim... Só estou sozinho porque quero e sei que o cheiro do cigarro te incomoda tal como a mim, mas não o deixo, sinto-o a queimar-me a alma, à medida que desaparece e deixa a cinza das emoções.
Tiro o casaco e deixo-o cair. Oiço os trocos pularem entre as pedras do passeio, felizes e ansiando pela liberdade da fuga descontrolada pela calçada. Salto a rede, sinto a gravilha nos meus pés e oiço o ultimo comboio da noite, o comboio que me levará para longe de ti.
Abençoai as luzes que vêm contra mim.

terça-feira, junho 22, 2004

Linóleo

Na verdade...sempre me foi difícil tomar decisões. A mais pura das verdades é que sempre me deixei deambular, deixando que outros decidissem por mim... Quer dizer, o acto de escolher entre dois caminhos para mim não me dizia nada! Pode parecer que sou maluco, um pouco demente, que sou um alienado ou tento passar uma imagem que não corresponde à realidade, mas não creio que o seja.
...Ou talvez seja! Os únicos bens que o meu modo de viver desligado e despreocupado me deixam chamar de meus é o colchão, a que chamo cama, a guitarra de duas cordas, onde toco melodias nas minhas horas mais amargas, esse pedaço de linóleo, dois metros por três, que à noite estendo no chão para dormir. Sim, também tenho um pedaço de chão e ainda um cão chamado Cão, que mija no meu pedaço de chão, e então?!
Bem, então tenho umas velhas calças de ganga com bolsos cheios de lenços de papel usados e bolinhas de linhas, um mundo onde tudo é importante para mim e parece correr pelas minhas pernas abaixo, direitinho ao meu melhor amigo: Linóleo!
Ai Linóleo, que nas noites frias de Inverno me serves de lençol e me amparas a cabeça e me fazes acreditar que durmo numa cama a sério!

Sim amigo! Eu sou aquele que vês à noite na praia a acariciar a areia, garrafa de tinto na mão e um bolso cheio de trocos. Sou aquele com quem te cruzas no metro, violino debaixo do queixo, a cantarolar disparates, a tocar com um sorriso amarelo nos lábios.
Sou eu que vou lá atrás, no último banco do autocarro, sou eu na plataforma do metro e do comboio, sou eu que não te saio da cabeça. Sou eu...

sexta-feira, junho 04, 2004

Natureza e Eu

Caminho pela rua sentindo um cheiro primaveril no ar. Por cada passo que dou sinto uma satisfação enorme por estar onde estou. Apetece-me voltar atrás e passar no mesmo sítio novamente, como desejando um deja-vu. Por entre as folhas verdes das árvores espreita a lua cheia, ela ilumina o meu destino por mais que pense que é traiçoeira. Na calçada sombria a cor branca das pedras confunde-se com o amarelo das flores. Uma perfeita sintonia de cor e cheiro invade-me o coração.

Não consigo pensar em mais nada, sinto uma satisfação enorme por estar a caminhar. Apetece-me correr pela rua fora, apetece-me trepar a tudo o que está à volta, apetece-me libertar das opressões, apetece-me ser o que realmente sou… apetece-me fazer parte da natureza.

Uma leveza espiritual tomou conta de mim, como se tivesse sido drogado, tudo à volta não interessa, sou apenas eu e ela. Uma cumplicidade interessante, eu gosto, ela também gosta e cada vez está mais bonita… Sinto que se não fosse parte dela, ela seria parte de mim.

Sinto… E contente caminho.

domingo, maio 30, 2004

Domadora de desejos (II)

A noite caiu calma, quando os lábios se tocaram de novo, apenas tinha restado o prazer, e alguns corpos molhados. A sombra nua que se movia, desaguava suas curvas no descanso.
Já não havia nuvens e a estrela do poente que caminhava para horizonte tocou-lhe e fez dele seu amante…
A Lua, a nascente, erguia-se numa nova noite. Seus olhos deixaram de brilhar, já não havia força eterna que os fizesse despertar. Olhos de que cor?! De que expressão?! Uma recordação!? Por uns momentos pensou-se ser imaginação. Eram os Olhos do Mundo, Olhos do Coração… Não havia nada mais mágico que a domadora desejos… A tocar-nos com suas mãos… a soprar-nos seu calor… A inundar-nos de paixão…
Noite cheia de lembranças e sonhos, de futuro e fantasia, que nem a mais inabalável alma escapava a tamanha sabedoria. Uns perdidos da razão falavam sozinhos no sombrear dos desejos, todos queriam ser servos desse alguém, mas nem eles sabiam de quem.

segunda-feira, maio 24, 2004

Pensamentos avançados...formas de expressão primitivas

11/05/2004 (à noite)

Não é novidade para ninguém que o ser humano é deveras um ser com uma mente muito complexa. Somos um ser que foi feito para pensar, senão experimentem ficar uns momentos sem pensar em nada...tarefa complicada não? Todos os gestos, todos os olhares, todos os tons de voz daqueles que nos rodeiam passam pelo crivo do nosso pensamento. O controle é tão rigoroso que o mais distraído poderá estranhar porque é que determinado indivíduo deixou de lhe falar sem qualquer motivo aparente.

Mas isto não é tudo...o nosso pensamento é tão complexo que é impossível expressar por palavras, muito menos por silogismos organizados, aquilo que nos vai cá dentro...aqueles que se aproximam mais são os poetas, que acabam por dizer aquilo que toda a gente pensa mas que não tem coragem nem capacidade para expressá-lo num raciocínio coerente e aceitável com valores vigentes relativamente a um tempo e a uma sociedade. Sim, valores!!! Ou pensam que aquilo que vocês pensam está desprovido de sentimentos, desejos, interesses ou convicções!!!

Os nossos pensamentos têm uma forte componente sentimental. Vejo o sentimento reflectir-se no pensamento de duas formas distintas. Como sentimento contido no pensamento que é irracional relativamente ao cânon da sociedade, mas que inconscientemente o tem em conta, tal qual fosse um reflexo espontâneo. Temos, por outro lado, o sentimento como força motriz do pensamento que passo a explicar agora. Andamos num estranho equilíbrio entre o ponderar muito bem as consequências das nossas acções sentimento-motivadas e o não ponderar de todo as mesmas. Por um lado a primeira hipótese oferece controlo e segurança mas torna a acção pouco espontânea e inibida. Por outro lado, a segunda permite atingir picos de genialidade, mas também permite atingir picos de estupidez. Os sentimentos são um catalizador com um potencial imenso potenciando a formação de novas conecções nervosas nunca dantes experimentadas. Assim temos mais e novos pensamentos prontos a saltar cá para fora e sujeitar-se ao teste do comportamento padrão. Assim, tendo em conta o que foi dito atrás, o sentimento está na génese e essência do pensamento.


24/05/2004 (à tarde)


Às vezes até penso que, em sociedade, vivemos numa espécie de equilíbrio instável. Equilíbrios contidos uns nos outros. Qual o mais abrangente e qual o mais restrito? Quantos equilíbrios? Será que é honesto falar em contagem? Será que estão estritamente contidos uns nos outros, ou assumem uma relação inimaginávelmente mais complexa? Às duas ultimais questões talvez saiba responder duma forma intuitiva, também são as mais genéricas; dão muita margem de manobra para não errar e para não cair na tentação de ser demasiadamente determinista. Mas às vezes penso...há certas alturas em que penso ser essencial ser determinista, temos exemplos na Física (teoria relativista de Einstein, que agora parece estar demonstrado ter algumas inconsistências (1) ), Filosofia (o conceito de tábua rasa de John Lock (2) que, apesar de incorrecta, permitiu retirar excessivo peso à inteligência herdada), Religião (o conceito de ecumenismo de Mahatma Gandhi unindo edifícios religiosos aparentemente incompatíveis (3)), Psicologia (Freud (2) e a tipologia da mente em três partes - id, ego e super-ego)
...

Acredito, meus senhores, que todas estas descobertas/teorizações são fragmentos de verdade, construídas com base em crenças, desejos ou até mesmo preferências...em suma...emoções. Para mim começa a tornar-se claro o quão importantes são estas emoções, que se equilibram(A) incessantemente com o super-ego ou com algo mais complexo, que poderia estar relacionado com equilíbrio (B) entre as nossas subtis especificidades, mas que ainda não atingimos. Consigo ver o equilíbrio(B) dentro do equilíbrio(A) e vice-versa, mas qual o peso que assume cada contribuição? Pergunto outra vez, será assim tão simples? Não creio. Acredito, de uma forma genérica, que as emoções são o vector que nos faz não ficar parado com medo de errar, talvez não sejam as únicas responsáveis meus amigos, mas paciência, a verdade vai-se saboreando à medida que, lentamente, nos vai sendo dada a conhecer...por deterministas é certo...mas não deixa de ser verdade.

22/05/2004 (à tarde)

Dada a impossibilidade de expressar os nossos pensamentos integralmente de uma forma coerente e aceitável, usamos nos nossos diálogos do dia-a-dia fórmulas optimizadas que se repetem incessantemente nas mais banais situações do dia a dia. Desta maneira, acabamos por usar todos a mesma linguagem, linguagem que anda a um nível mais baixo que o nosso pensamento... é o preço que pagamos para nos podermos entender. Àqueles que estão conscientes deste facto um pedido: tenham mais consideração pelo que os outros dizem, por ventura não será profundo relativamente ao que vocês pensam mas também estamos só a comparar batatas com cenouras.


1) João Magueijo; Mais rápido que a luz “A biografia de uma especulação científica”; gradiva; 2003
2) Sprinthall, Norman A.; Sprinthall, Richard C. ; Psicologia Educacional; McGraw Hill; 1993
3) Richard Attenborough; Gandhi (filme); 1982

sábado, maio 22, 2004

Hecatombe V - Atãomasatão e agora?

"Vais pagá-las, meu malandro, vais pagá-las bem caro, vou-te mataarr!!!"

Cherneboff lançou o seu corpo flácido numa carga frontal, disposto a obliterar o seu oponente com o maior dano possível!
Mas Enguia estava plácido, impassível perante uma visão que faria tremer o mais rijo dos Veterânus Kombatentes...

Mesmo no último instante esquivou-se com um salto fantástico, enquanto Cherneboff arrasava filas inteiras de bonitos assentos com estofo azul, uma maravilha quando estamos no cinema e nos começa a doer o rabo... Barão Enguia, agarrado ao tecto do Auditorium - a extrema oleosidade dos seus cabelos revelava-se uma mais-valia nas situações mais apertadas - não tardou na resposta: apontando os micro-lançadores que protuberavam de cada orelha, libertou uma barragem de TAKTIKOV's mortíferos sobre o inimigo distraído.
Os micro-misséis TAKTIKOV(tm), tal como o seu inventor, não são para ser subestimados; apesar do seu tamanho "mini", portam uma potência devastadora que, aliada ao seu sistema de busca de alvos - capaz de guiar, inofensivamente, um missíl por dentro de um ratinho, desde a boca até ao... pronto, vocês sabem -, tornam-no no artefacto bélico mais avançado do mundo (...do mundo lusitano, pelo menos. Não queriam mais nada?).

Foi assim que cada missíl encontrou e detonou precisamente no alvo escolhido: o esfíncter anal de Cherneboff!
Este inchou com um ruído de gases, até que rebentou numa bola de fogo laranja (tinha de ser...), espalhando bocados em volta e formando um quadro tão nojento que só de falar nisso me dá vómitos.

O nosso (anti)herói limpava o suor da testa às costas da mão, quando um murmúrio crescente lhe chamou a atenção.
Olhou em volta, e foi com mal disfarçado espanto que viu que os bocados de Cherneboff se juntavam, qual caricatura de Bubu, numa forma vagamente semi-humana. Só depois é que Enguia reparou na plateia de apoiantes, incitando e dando graxa de uma maneira que meteria dó se estas criaturas não fossem tão detestáveis como o próprio líder.

Barão Lampr... Enguia (uuups) jizou um plano. Eliminaria os sequazes do vilão duma vez só, mas não da mesma maneira: não podia correr o risco de estes lhe ressuscitarem à frente dos olhos, era um desperdício de munição!

Falando para o microfone - habilmente camuflado no palito que tinha nos dentes - acedeu ao sistema de armas:

- Alterar configuração. Password: "The Trooper".

(uma voz metálica) - Password aceite.

- Configuração de ogiva: TAKTIKOV Luxury.

Um clique imperceptível indicou-lhe que o sistema aceitara as alterações. Que diferença para o sistema anterior! O outro, volta e meia, lá aparecia a merda do ecrã azul a dizer blah, blah, fatal error... Este podia ter um pinguim como símbolo, mas era infinitamente mais fiável.
O Barão disparou uma salva dos novos foguetes direitinha aos vermes de Cherneboff. Estes encolheram-se na antecipação do impacto, mas tudo o que lhes sucedeu foi serem envolvidos por uma nuvem cor-de-rosa perfumada...
É que estas ogivas, ao contrário das anteriores, não eram explosivas. O que não queria dizer que fossem inofensivas. As ogivas Luxury, como o nome indica, mergulham o alvo num turbilhão de lascívia incontrolável, que só termina com a morte da vítima por exaustão. Isto só é possível graças ao cocktail químico à base de ostra e Casal Garcia - uma para excitar, o outro para desinibir. Sem dúvida uma invenção "after-hours" de Enguia no seu gabinete... o malandreco.

Foi assim que a trupe de Cherneboff, de início com relutância mas depois já com mais à-vontade, se começou entremirando e entreapreciando, para depois se acabar entremeando numa confusão de gritos e gemidos, pernas, braços e outros membros...
Barão Enguia, apesar da sua veteranice nestes assuntos, desviou o olhar ante espectáculo tão degradante.

Foi assim que não descortinou a massa viscosa do traiçoeiro Cherneboff a insinuar-se nas suas costas... Este atacou com fúria animalesca, envolvendo--o e deglutindo-o de uma só vez!

Os alunos sobreviventes olhavam, primeiro incrédulos, depois desesperados perante a cruel evidência dos factos: Barão Enguia já não existia.
E agora? Que seria da liberdade de pensamento, da alegria académica, da irreverência estudantil? O panorama era ainda mais negro do que se o Barão não tivesse aparecido...

Cherneboff, no meio de tudo isto, achava-se impante de satisfação, a glória da vitória fazia-o transbordar de felicidade... Peraí.

"Ahh, Felicidade... Todo mundo gosta!" As reminescências de um concerto de Hélder, Rei do Kuduro, ecoavam na sua mente. Como? Se nem os tons agudos da sua tripa flatulenta constituiam gosto musical para Cherneboff.

A resposta estava em Enguia. Ou melhor, não estava, uma vez que Enguia se encontrava agora dissociado e atomizado por todo o interior de Cherneboff, o seu ser tão puro de energia animal como no início da Noite Académica.

O potencial da descoberta foi demais para Cherneboff. O seu ego pérfido vacilou, tal como vacilou em seguida o seu fedorento envólucro.
No fim, Cherneboff soçobrou para jamais se voltar a erguer...

Os que sobreviveram à ruinosa hecatombe olharam uns para os outros, ainda incrédulos, mas agora da vitória alcançada tão perto do fim e da maneira mais improvável possível.
E a maior parte chorava ao pensar no sacrifício supremo de Barão Enguia, o Bem-Amado.

Foi, pois, com assombro que olharam para o fantasma de Enguia levitando no meio deles, envolto numa aura azul-brilhante, irradiando puro macho power.

-"Lembrem-se... De quem são..."

-"Usem a força..."

-"I am your father..."

(alunos, em coro) - NNÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOO!!!!

No meio desta palhaçada toda ninguém se lembrou de olhar para cima e ver que a massa encefálica (ver Parte IV, crianças...) sugada pela máquina de Cherneboff fervilhava efervescente de ideais rebeldes e sexualidade recalcada.
O que resultou numa enorme explosão de raios gama da qual ninguém sobrou pra contar a história.

Nem os anjinhos.

E acabou-se.

sexta-feira, maio 21, 2004

Domadora de desejos

Céu ficou cinzento enquanto seu calor corporal derretia a vela que iluminava o quarto escuro. O relampejar sombreava na parede vazia uma silhueta de nudez em tons de preto e rosa. Seus longos cabelos tocavam-lhe nas elevações frontais enquanto que sua perna magra estendida sobre o céu, fazia estremecer o brilho dos seus olhos. Água escorria-lhe pelo corpo como um ribeiro, e das suas curvas nasciam cascatas. Havia quem lhe chamasse deusa da trovoada, outros, domadora de desejos.
O relampejar parou quando sua aura se elevou, em terra ficaram as vontades e as obras de quem se fez estremecer pelo medo do instinto.
Caminha agora sozinha, iluminando o caminho, na terra molhada ergue seus pecados, no refúgio o pastor se acomodou e seu rebanho com menos um ficou.
Havia quem dissesse que ela era cruel, que ligava o céu e a terra como quem descarrega a raiva em alguém. Todos falavam dela como ninguém, mas ninguém soube dizer quem era quem.

(Contínua)

quarta-feira, maio 12, 2004

Poleirus CasernAEs

Entrou na Arena preparado para atacar esse grande monstro paquidérmico que há já várias gerações habita na Casernae. Levava consigo várias armas de arremesso verbal, prontas a serem utilizadas. Contava com o apoio de toda a classe dos Combatentes, o seu povo, nesta sua luta contra a tribo das Nulidades, essas bestas arrogantes que incham cada vez mais a cada ano que passa, à conta das doações generosas dos seus súbditos e à conta também das doses maciças de cerveja ingerida anualmente.

Uma das grande vantagens, e com a qual contava, é que as Nulidades se encontram em inferioridade numérica, pois a tribo dos Incapazes havia, através de Istremideira, filha do Grande-Chefe, havia na véspera prometido o seu apoio durante o brutal ataque que se esperava.

O combate pela Casernae começou! A besta Lálá, grande e paquidérmica, supremo líder das Nulidades, começou por entoar os encantamentos arcanos que visavam acordar a Nadaquírias, as famosas cavaleiras de cabeça oca, capazes de lutar até à morte pela entidade que as invoca. A resposta veio em termos imediatos por Isfumaça, chefe da tribo dos Incapazes, que ao emanar fumos soporíferos pelas narinas conseguiu adormecer parte dos combatentes, entorpecendo Lálá. O Regente dos Combatentes optou então por atacar forte e feio as Nulidades.

A saraivada de socos foi tal que acordou a Lálá do seu entorpecimento e este começou a estrebuchar. Nesta altura, com a besta a sentir-se encurralada, era fundamental o ataque decisivo dos Incapazes, mas Isfumaça optou por largar um fumo avermelhado que bloqueou o Regente dos Combatentes e sarou as feridas da divindade das Nulidades.

Foi então que a enevoada realidade o atingiu como um soco secamente desferido no estômago: a tribo dos Incapazes estava na realidade aliada às Nulidades!

Apesar da surpresa, ainda havia a hipótese de, através de ataques bem desferidos através da fumaça, se conseguir incapacitar Lálá, mas a besta paquidérmica possuía uma couraça endurecida com o tempo e, graças a Isfumaça, que entretanto se esfumara no ar, havia já protegido a sua zona mais desprotegida que é, como todos sabem, a sua flácida barriga. O lugar de Isfumaça, que (como já foi dito) se esfumara no ar, foi tomado por Ispoeiral e um INcompetente-Rúbrico, posto muito importante entre os Incapazes, pois neles assenta toda a sua estrutura comunitária.

Lálá ia aparando os golpes deferidos pelo Regente dos Combatentes que por sua vez tentava a todo o custo evitar as nuvens de poeira, fumaça e areia que a tribo dos Incapazes levantava.

O combate ficou decidido quando, cego pelos Incapazes, o Regente dos Combatentes sofreu o inesperado ataque BI-Scoito de Lálá, um ataque assassino que visava colocar o Regente dos Combatentes a esvari-se em sangue. Graças às nuvens de fumo o ataque não foi desferido com toda a sua devastação, mas os estragos produzidos mas produziram um efeito incapacitante que fez com que cada movimento aumentasse o tormento do Regente dos Combatentes, que por esta altura era humilhado verbalmente pelos Nada-de-Nada, nome pelo qual eram conhecidos os dirigentes das Nulidades encarregues de alimentar Lálá. Não bastando a verborreia verbal que lhe entrava ouvidos adentro, o Regente dos Combatentes definhava a olhos vistos, cada vez que esboçava um movimento.

Foi então que a juíza Inparcial deciciu terminar o massacre. Lálá, muito satisfeito, saía mais uma vez refastelado com os restos moribundos do Regente dos Combatentes. Isfumaça, Ispoeiral e os Incompetentes-Rúbricos levavam a besta ao colo, de novo para a Casernae.

Os Combatentes, chorando o massacre do seu líder, apontavam agora baterias aos Incapazes, decididos a chacinar uma tribo tão ignóbil e incoerente, perdido que estava o Poleirus Casernaes.

sábado, maio 08, 2004

Egoísmo

Não escrevo
Paro
Penso
Não sei que dizer
Não sei que escrever
As palavras não saem
Estou mudo na escrita
Sem saber
Sem querer
Cá estou
Na caneta
No papel
Na alma

Sou som
Sou visão
Sou a onda do mar que se desmancha na areia
Sou luz
Sou escuridão
E penso
E hesito
Não escrevo

Paro
Nada sai
Nada escrevo
Perco-me naquilo que não sei dizer
Naquilo que quero dizer mas não sai
Sou alma
Penso em ti
Paro
Suspiro
Não escrevo

Sou saudade
Sou sonho
Penso em ti
Em como te vejo com os olhos fechados
E continuo
Sem escrever
Sem dizer
Não sei
Não digo

Paro
Penso em ti
Sonho
Toco em ti sem aqui estares
Estou confuso
Sou confusão
Sou tranquilidade
Sou lembrança
Sou o papel e a caneta
E penso em ti
Naquilo que somos
Naquilo que não escrevo

Tu és
Eu sou
E não sei
Não digo
Não sei que escrever
E avanço
Recuo
Paro
E chego a um ponto que não sei que mais escrever
E penso em ti

Escrevo
Paro
Não sei
Não digo
É só meu

terça-feira, abril 27, 2004

Tonan, o Barbariano

Capítulo 1 - Penetrando na História (ui!)

«Daqui falarei dos Povos do Norte, da Grande Ruína, dos Conflitos Arcturianos e das facções em contenda: os Tartaglio, os Pharpal e os Gugures.

«Destes últimos salientaram-se, pela sua bravura em combate e sabedoria no falar, o clã Gu'Man. Estes guerreiros de olhos profundos e brilhantes e natureza indómita eram guardiões de uma tradição milenar, pois a História dos Gu'Man tem a idade dos Gugures, e os seus primórdios remontam ao período Arboril, em que grande parte das regiões acima do mar da Obul setentrional se encontravam repletas de grandes extensões de floresta.

(...)

«Mas o tempo passou, e ao Período Arboril sucedeu o Período Mecano-Religioso. E foi durante este que as civilizações Tartaglio e Pharpal conheceram o seu apogeu. Conheceram-no graças ao progresso da instrumentalização e do conhecimento técnico, mas também à custa dos recursos naturais de Takar, o maior continente de Obul. Foi assim que grande parte da sua zona florestal foi derrubada e abatida como matéria-prima para os altos fornos das civilizações crescentes.
«Enquanto estas civilizações sedentas de poder se impunham de forma crescente no mundo antigo, os Gugures mantinham-se na penumbra, pois eles davam pouco valor às coisas complicadas. Amavam, sim, as maravilhas da natureza que os rodeava, reverenciando-a e dela extraindo lições. E os Gu'Man não eram excepção. Dos Gugures, eram os que mais se distinguiam na artes do canto e da escrita, sobretudo quando exaltavam o calor do combate e a glória da conquista. Sim, porque apesar do valor dado às relações dentro do respectivo clã, o quotidiano dos Gugures era pontuado por numerosas disputas inter-tribais. Na sua maioria poderiam ser consideradas frívolas; os próprios chamar-lhes-iam "questões de honra".

«No entanto, semelhantes conflitos eram fogo de vista quando comparados com o azedume e a arrogância crescentes entre os Tartaglio e os Pharpal. Sim, frivolidade seria pouco adequada para descrever as relações entre estes Povos: entre ambos fluia puro ódio. "Relações diplomáticas" eram assunto só abordado em anedotas ou, mais tacticamente, em ciladas.

«"Massacre" tornou-se uma palavra demasiado comum para ambos os Povos; era fonte de gáudio quando acompanhava uma conquista recente, e inflamava o desejo de vingança quando era associada à derrota infligida.

«No meio deste turbilhão sócio-cultural adivinhava-se um negro destino para...» >Aaatchum!!<

Tonan pouco ligava aos gatafunhos do velho alfarrábio, enquanto rasgava outra folha para limpar o muco esverdeado que escorria do seu nariz peludo. O bafiento volume fora retirado das mãos enrugadas de um sábio moribundo, suficientemente infeliz para se cruzar com um dos salteadores mais fedorentos da Floresta Negra - também chamada de Pintelheira Negra devido ao formato encaracolado e peculiar da sua vegetação.
O guerreiro exaltava, isso sim, a textura e suavidade do papel - "Polpa real!", bufariam os eruditos. De facto, muitos bibliotecários se enforcariam se tomassem conhecimento do uso que Tonan dava às páginas do tomo sagrado, um exemplar raríssimo dos "Anais do Tempo".
Numa coisa Tonan e os sábios estariam de acordo: tanto para um como para os outros, o título era mais que apropriado...

E que suavidade...

(fim da 1ª Parte)

sexta-feira, abril 09, 2004

O ser humano numa fracção de segundo (2ª parte)

Encontro-me sobre um extenso campo verde sarapintado de flores, a família está toda reunida num piquenique, novos e velhos todos se apinham junto à comida, conversa-se à boca cheia entre cada garfada, sente-se a felicidade, respira-se a liberdade. Vejo-te preocupada para que não falte comida a ninguém mas no fundo estás feliz. Eu, no meio de todo o ruído harmonioso olho o teu rosto pedindo um beijo sentindo o teu cheiro, misturado com o leve aroma das flores, rosas, dálias, túlipas, malmequeres. De repente o negrume invade o espaço.

Vejo-me tão novo, já não me lembrava que outrora fora assim, estou num bar-discoteca rodeado de alguns amigos. Sentimos a batida e damos os primeiros passos, primeiro devagar só até ambientar, oleamos bem a máquina e o ritmo começa a aumentar entretanto já o comboio anda na pista e ninguém quer ser maquinista. Num instante começa tudo a andar à roda, vejo tudo fundido no intenso rodopio.

Sou outra vez criança, divirto-me que nem um perdido num daqueles carrosséis manuais, rio sem contenção sem qualquer preocupação. Naquele momento só o meu mundo de ilusão conta, qual astronauta que na sua na sua nave supersónica sulca os limites do espaço em busca de novos mundos. Em instantes tudo muda, desequilibro-me e caio do carrossel. A meio da queda, todo o meu pensamento anterior é sugado pelo terror antecipador da minha aterragem forçada...PUM!!!! Caí na áspera areia e estou estendido no chão, estou consciente e oiço vozes à minha volta, falam todos ao mesmo tempo não consigo perceber nada. De repente abro os olhos e, destacando-se dos vultos à minha volta, vejo a minha educadora com uns olhos preocupados a olhar para mim.
“Estás bem?”
“Acho que sim...deixe-me levantar”.
De repente tudo se dissolve...

Estou agora submerso por um líquido viscoso, o calor e o conforto envolvem os meus sentidos. É tão bom estar aqui!!! Eu daqui não quero sair. Consigo mover os meus bracinhos e pezinhos, articulo-me como um todo, não controlo bem os movimentos...dei um pontapé onde não devia, ups!!! De repente as águas agitam-se e eu fico alerta, oiço um potente palpitar de coração que ecoa por toda esta bolsa, enquanto isso sinto o calor que emana agora mais forte do corpo da minha mãe; ao mesmo tempo, começo a sentir umas cócegas, primeiro na barriga, junto ao cordão umbilical, depois por todo o corpo. Estou envolvido por uma corrente eléctrica que me faz sorrir...mãezinha boa!!!

Já não estou no útero da minha mãe...vejo agora uma luz ofuscante que, progressivamente, vai dando lugar a uma visão completamente diferente da realidade que em tempos conheci....

Era tudo uma ilusão. Futuro e Passado fundem-se, já não faz sentido a linha unidireccional passado futuro mas antes uma esfera temporal que expande e contrai continuamente. Esta superfície esférica, que é o tempo absoluto, é uma função de “infinitas” superfícies esferóides contidas ao longo de todo o diâmetro dessa esfera. Cada uma destas superfícies esferóides representa a inter relação entre um “ser” e o espaço que naquele instante habita. O desequilíbrio entre “ser” e espaço representa um afastamento da esfericidade e, curiosamente, é esse afastamento que provoca o movimento de toda a esfera temporal, que como um todo nunca se afasta da forma esférica. Assim, a função que define a esfera temporal como um todo, e que muda a cada instante devido ao desequilíbrio entre “ser” e espaço, irá resultar na alteração do seu diâmetro...

Já não sinto o paladar, já não vejo, já não cheiro, já não sinto, já não oiço...interajo directamente com a luz. Eu sou mas já não penso o mesmo...não tenho preferências nem necessidades pessoais...agora vejo tudo como um todo...

...mas se outrora assim fosse viveria como um louco.

quarta-feira, abril 07, 2004

Concha

Sorriso que esconde a inveja
Gargalhada venenosa e fingida
Ser rastejante, insecto pequeno e viscoso
Sob uma concha se camufla
Aos olhos do mundo...

Pela frente solícito, bondoso
Por trás uma só faca não chega
Para a intriga e a traição consumar...
Seguro de si com a sua tenaz
Todos pensa reter e usar...

Felicidade de outros, não a sua
Impele-o a agir, a denegrir, a manipular
A tecer as suas teias envolventes
Brilhantes e frias como diamantes
E tão afiadas como um...

O dia virá em que a concha se partirá
E a verdadeira natureza desse ser se revelará
Patético, invejoso, falso, e só...
E como a um insecto será muito fácil
Ignorar, ou talvez mesmo, esmagar...

domingo, abril 04, 2004

Regresso da Jovem Primavera

Regresso,

O sol quente abraça os espíritos,
Na sua rima matinal.
Onde vozes coloridas esvoaçam,
Onde a água mágica refresca
A primavera que regressa de novo.

Jovem,

Esta natureza revoltada,
Onde a beleza e a frescura.
Libertam sopros de magia.
Com cores diferentes,
Com odores infindáveis.

Tu,

Que te sentes diferente,
Com menos roupa pesada,
Com mais vontade de viver,
Com a beleza de um ser,
Sem motivos para esquecer.

E amanhã,

Ao acordar vamos querer voar
Nas asas do mundo pousar,
E ao regressar um sorriso
De quem do mundo tudo espera
Um momento, um amor a despertar.


sexta-feira, março 26, 2004

Ao sabor do vento...

É duro, não é?
Olhas à tua volta e não vês mais do que o mar,
Eterno e intemporal,
Com o seu ondular constante,
O seu lamento tumultuoso,
E tu
Sozinho no meio, flutuando como uma pena
Ao sabor do vento,
Percorrendo montanhas e vales,
Desertos e cidades,
Sem resistir à direcção imposta, flutuando
Docemente, calmamente...
Custa-te, mas tem de ser!
Não podes, não consegues lutar!
Resistência é um mero pensamento
Que te assombra ocasionalmente...

Duro é ver-te!
Olhar-te como se olha a dança das folhas no Outono.
Como se do alto te esticassem a mão e tu fugisses,
Actuando como a borboleta, que foge à rede
Do inocente coleccionador.
Que te oferece a inacção?
Que prazer tiras do não fazer?
Será pois tua acção o bolinar,
Ou será teu pecado, somente, não lutar?

segunda-feira, março 22, 2004

O ser humano numa fracção de segundo

Último suspiro de agonia, limiar do medo e da dor.

...

Ainda existo, anda tudo rápido, tão rápido...zumbido insuportável submerso no vácuo ...mais rápido, mais rápido!!. Sinto a cabeça a estalar, grito de dor mas não me consigo ouvir, sobressalto de terror sem saber o que está para vir.
Num instante tudo muda, zumbido silencia, dor cessa, medo já não tem razão de ser.
Vejo uma luz branca que se dirige para mim, oiço vozes que há muito não ouvia, falam todas ao mesmo tempo, não as consigo entender.

À medida que me aproximo da luz vou desvendando de quem e para quem são aquelas vozes. É o meu avô que me fala:
- ” Não tenhas medo, já não falta muito para nos voltarmos a encontrar”
Oiço também a voz dos meus pais, amigos, irmãos...falam-me todos num tom suave, dizem-me que já estou quase a chegar...já não me sinto sozinho, quero cantar, quero dançar, quero-vos abraçar.

Deixei de ouvir as vozes, acabei de entrar na luz. Ecoa o som de um coração batendo lentamente. Começo a ouvir uma voz a cantarolar, soando baixinho, abafada pelo palpitar do coração. Lentamente o compasso cardíaco vai dando lugar à cantilena, é uma triste canção e sou eu que a estou a cantar...consigo ver a minha sala de estar, consigo ver-me a mim próprio, vejo-me no espelho, são lágrimas que inundam as rugas da minha face quais rios alimentados pela torrente de recordações que preenchem os meus últimos dias. Foi esta manhã que isto aconteceu lembro-me perfeitamente, mas como?!!?? De repente tudo se esfuma...

Encontro-me agora noutro lugar, vejo uma bela manhã sobre a janela de um hospital, consigo ouvir os pássaros cantarolar acompanhados pelo compasso de passos atrás de mim, sinto um ligeiro toque no ombro é um homem de bata branca, supostamente um médico “o seu neto já nasceu, é um menino, venha vê-lo siga por este corredor, ao fundo à esquerda”. Rapidamente por corredores, vejo macas, enfermeiros, oiço gritos de agonia, risos de alegria. Chego a uma sala, vejo a minha filha numa cara lívida indicando-me com os olhos o bebé que leva em braços, já mexe os bracinhos vai ser um reguila!!! O cenário incendeia-se, o pano de fundo cai...

Vejo a minha mulher caída em meus braços, olhar ofegante, gemido cortante. Olhando-a fixamente tentando perceber aquilo que quer dizer vejo seu gesto petrificar, sinto seu corpo gelar. Meu coração late desenfreado contigo a meu lado, sei que já não te posso ter, sem ti não sei viver!!! Vejo regatos a brotar do chão ao mesmo ritmo que um relvado se forma sobre os meus pés, diante dos meus olhos...

Continua...

terça-feira, março 16, 2004

Hecatombe - Parte IV - O Prepúcio do Fim

À entrada do Magnum Auditorium perfilava-se uma silhueta misteriosa, se bem que pouco imponente.

"Olhem, é ele!"
"Ali! Ali!"
"Oh, não!"
"Oh, sim!"
"Não!"
"Sim!"
"Oh!"
"Ah!"
Etc...

Cherneboff fumegava, um jorro negro brotava do buraco na sua gargantinha... Estava-se mesmo a ver que ia precisar de Tantum...

Entretanto, os alunos iam ressuscitando, lentamente; as almas inquietas no anseio de assistir ao combate do século (do Milénio!)...

" - A vossa atenção, séénhores e sééénhoraaas!"

"No canto laranja, meio azamboado mas ainda capaz de matar... Sua baixeza não tem igual... O seu hálito é FATAL!..."

"CHÉÉÉÉRRNEEBÓÓÓÓFF!!!"

A plateia Zombie apupava e de vez em quando saltava um pulmão, tal era o estado de podridão cadavérica...
A mesa dos corruptos aplaudia e tinha orgasmos de bajulação.

"No canto azul, do alto do seu metro e sessenta cinco de altura, com 395 quilos de potência cavalar, nada a perder e tudo a ganhar..."

Todo o Auditorium emudecera para ouvir o nome do misterioso desafiante...

"...BARÃO ENGUIA!"

O Barão Enguia! Assim era chamado aquele lendário ex-professor do Departamentóide, famoso pela sua indumentária metal (t-shirts MAIDEN) e cabelo oleoso, que abandonara a docência em litígio com o Directorado. Parece que não andavam muito satisfeitos com a natureza dos seus trabalhos de investigação, a altas horas de madrugada no gabinete...

De qualquer das maneiras, Barão Enguia estava de volta.
E fa-los-ia pagar caro a ignomínia de corromper a Instituição que, no fundo, ainda amava...

(talvez continue... não sei... bah...)

terça-feira, março 09, 2004

Amor... em quatro etapas.

No princípio a inocência,
Amor...
Abraços mágicos ao luar;
Um rio, um regaço aconchegante,
Uma só paixão, uma só crença,
Sentimento, terna doença...
Até ao abandono desesperante,
Um rasgo forte de dor
Para um novo abraçar:
Diferente, mas em transparência.

Depois veio a loucura,
O fim do amor...
O fim da compustura,
O fim da verdade,
O travo amargo da madrugada,
A travessia amargurada,
O desgosto que perdura;
Sem mel, sem doçura...
Desvaneio sem sanidade,
Louco incontido no seu fulgor.

Hoje a redenção...
Amor?!
Sem saber o que sentir,
Sem saber o que procurar.
Anseio sem coragem,
Sonho sem acreditar...
Não há magia ao anoitecer,
Rostos ternos a mudar,
Momentos a desvanecer,
Recordação sempre a surgir...
O barco já sem vapor
Que me deixa preso na margem...
Um ser em busca do seu perdão.

Amanhã, a incerteza...
Amor de verdade...?
Sentir o que já senti,
Perder o que já perdi,
Esperança sem idade...
Fardo carregado com leveza,
Ou folha insustentável da minha saudade...

Esperando pela mão que me venha buscar
Ou pela força que me faça voltar.

domingo, março 07, 2004

Poderia



Poderia ficar aqui por eternidades, olhando a Lua e vendo suas companheiras aparecer para iluminar os sonhos e os corações.
Poderia ficar por aqui por momentos, vendo as luzes da cidade a aparecerem, tentando ofuscar minhas palavras e meus pensamentos.
Poderia fechar os olhos e deixar-me submergir pelas lágrimas de uma paisagem tão calma.
Poderia fazer um gesto e varrer tudo da minha visão, esmagar a Lua com a minha mão.
Poderia sentir-me amadurecer, aprender com as fases da Lua que tudo acaba um dia e tudo volta a aparecer.
Poderia ser mais e talvez juntar-me a todos os outros que miram o céu.
Poderia ser tanto mas nada me interessa, viro as costas a tão pouca beleza e em Ti repouso de certeza.

quinta-feira, março 04, 2004

Sonha longe

Estava a ouvir uma música e ao som dela apeteceu-me expressar um pensamento:

Sonha longe, sonha acreditando,
Ouvindo os corvos no céu
Escutando suas palavras,
Nas asas negras, uma lição.

Sonha longe, sonha vivendo,
Canta olhando o chão
Entoando seus sons,
Nos teus pés brancos, a razão.

Sonha longe, sonha esperando
Reproduz-te no horizonte
Simulando linhas brandas,
Na esperança tardia, a paixão.

Algumas fotos antigas, outra não

Passagem de ano 2001-2002:
  • Degredo

  • Pessoal

  • Pessoal2


  • Cantina no 1º Ano 1999-2000:
  • Massarico


  • 2004, algumas cenas duvidosas de pessoas famosas:
  • Algo Estranho
  • terça-feira, março 02, 2004

    Apenas sentindo (3ª parte)

    Toda aquela luz verde intensa se acomodou aos meus olhos, transformando-se numa floresta verde e odorífera onde se destacavam pinheiros, sobreiros e toda uma vegetação inferior variada. Os pássaros cantavam e as urtigas picavam, as abelhas zumbiam e meus olhos seguiam. O calor aumentava e o meu corpo aquecia.
    A luz filtrada pelas folhas tornava aquele sítio um local excepcional, a natureza reflectia a sua maior beleza! Olhei o céu azul no zénite… E caí de tontura…
    Continuei perdido no desmaio. Estava numa floresta linda e tinha acabado de sair de uma gruta…Até que de súbito alguém me volta a chamar! Eram as árvores!? Não, mexia-se… não libertava odor, era igual ao meu… fechei os olhos e imaginei que estava a olhar-me, e nisto uma mão segurou a minha, aproximou-se, tocou seus lábios nos meus e sussurrou: “Encontraste-me!”.


    FIM

    terça-feira, fevereiro 17, 2004

    Caminhar,
    Acto incessante de procura constante
    Por algo de novo e belo
    Que apague do sentimento
    Essa dor, esse sufoco
    Que de provocar tão grande sofrimento
    Me impede de no caminho progredir.

    Olhar,
    Em meu redor as barreiras,
    Ver as fronteiras dos caminhos,
    sebes, rochas, arames com espinhos,
    ver à tua frente outros mais velozes.

    Sentir,
    O ar quente e morno a dar-te no rosto,
    O pó que se levanta e se mistura com o suor.

    Querer caminhar para lá do horizonte,
    Poder levantar fragas, vencer barreiras,
    Chegar e dizer: é o fim!

    16/Jun/2003

    quarta-feira, fevereiro 11, 2004

    Quem és tu?
    Leio-to nos olhos receosos...
    Ao que vens?
    Murmuram teus lábios mudos...
    Não te aproximes!
    Oscila o teu corpo frio...

    Tu conheces-me!
    Diz-te o meu olhar reconfortante...
    Sabes o que quero!
    Confessam-te os meus lábios vibrantes...
    Não posso evitá-lo!
    Envolve-te o meu corpo quente...

    Aceita, dá-me todo o teu amor...
    Doce e enebriante mel...

    sexta-feira, fevereiro 06, 2004

    Apenas Sentindo... (2ª parte)

    Sentei-me numa pedra por instantes a reflectir, a pensar mais pausadamente… apercebi-me que estava vestido com uns calções e uma camisa. Nos bolsos encontrei algo mas não me apercebi logo o que era… pela forma era uma fisga?! Não!? Para que precisaria eu de uma fisga ali? Podia ser que dê-se jeito mais tarde… Continuei a procurar, havia mais alguma coisa nos bolsos, um papel amachucado, daqueles plastificados… e uma pedra!
    A minha arma de defesa estava completa… porque pensaria eu em arma de defesa?!
    Ouvi uma voz ao longe, era o meu nome… Seria coincidência? Dirigi-me lentamente na direcção do chamamento. A voz era meiga e doce, tinha um tom assexuado, seria uma criança? Que mundo seria aquele, onde havia crianças na escuridão?
    Passo a passo, entre pedras lisas e gélidas apercebo-me que os meus sons faziam eco várias vezes, seriam rochas à minha volta? Abri os braços a pouco e pouco até que sinto um dedo a tocar numa pedra, igualmente gélida, mas esta rugosa e mais robusta. Continuo a caminhar encostado à mesma.
    A voz continuava a ouvir-se mas cada vez mais suave, notando-se um som de fundo, pingos de água a cair, estes entoavam como de um poço se tratasse… Há já algum tempo que tinha reparado que estava dentro de um gruta, e que andava aos círculos. Tinha começado a sentir alguma luz, mas como as pedras eram negras não tinha acreditado que era mesmo real. Já sentia a forma dos meus pés e das minhas mãos… de súbito, no fim da curva, tudo se transforma numa luz verde que invade o meu corpo. Não conseguia ver mais nada à minha volta, apenas tons verdes a reluzir…
    (continua...)

    segunda-feira, fevereiro 02, 2004

    Hecatombe - Parte III

    Uma nova vaga de assalto estremeceu a Resistência até aos alicerces, e muitos foram os que cairam na face do novo Terror.
    Os Informáticos foram subjugados por bonecas insufláveis e Internet de banda larga.
    Os Físicos sucumbiram com o corte da luz e com o facto de já ninguém lhes ligar nenhuma.
    Os papagaios dos Engenheiros cairam devido ao fio eléctrico ser demasiado pesado para o papel de que eram feitos.
    Os Químicos, que, ao ficarem sem reagentes, não sabiam fazer mais nada, renderam-se em troca dum punhado de regularizadores de ebulição e batas lavadas.

    No fim, os sobreviventes foram conduzidos ao Magnum Auditorium, onde foram expostos à cruel tortura de assistir ao discurso do novo Chefe do Directorado:

    " - Bem-vindos ao novo amanhecer! Como futuros contribuintes têm o direito de assistir ao dealbar de uma nova era..."
    " - Uma era de progresso, de desenvolvimento, de auto-estradas, de tachos... à vossa custa!!"

    Nesse instante, uma miríade de tentáculos enferrujados desceu do tecto e, com precisão metálica, se cravaram cada um nos crânios dos infelizes prisioneiros.

    Os gritos de terror e agonia misturavam-se com os repugnantes ruídos de sucção, enquanto toneladas de massa encefálica eram sugadas num compasso sincopado com as gargalhadas do novo Direktor.
    Foi então que este deixou cair a máscara, e se viu, entre sangue e gemidos, a hedionda carantonha de peixe do próprio Chernebof.
    Este vinha secundado pela Cruel Dama Láctea, a infame Quebra-Ossos!

    "- A vossa tenra mioleira servirá de substrato para a criação dos meus novos servos..." - vaticinava, expectorante, um pustulento Cherneboff.

    "- Julgava que fossem suficientemente deseducados e incultos para discutirem as minhas políticas... Julgava que os Centros Comerciais lhes iriam aplacar a veia contestatária... Qual quê! Só estão bem quando se estão a queixar... Queixem-se agora, penduricalhos!" - declamava o ditador. Mas naquela pilha de cadáveres exangues já ninguém o ouvia.

    Perante uma vitória tão completa, Chernoboff não pode evitar uma gargalhada de triunfo:

    "BUAHAHAHAHAHAHAHAHAARRGHUKLUKLUKLUKLUK!!!!"

    O seu riso cavernoso dera lugar a um gorgolejo incongruente quando um micro-míssil TAKTIKOV(tm) o atingiu na garganta.

    (continua...)

    domingo, janeiro 25, 2004

    Hecatombe - Parte II

    A situação deteriorava-se. Apesar da resistência inicial no 7º Templo da Ilógica, os alunos capitularam, exaustos de ouvir as ladainhas mortalmente entediantes dos professores do Departamento. Estes não foram importunados, visto que as tropas invasoras selaram prontamente os seus gabinetes em sarcófagos de betão, para conter a ameaça.
    Os restantes Departamentos resistiam heroicamente.
    Os Informáticos combateram em barricadas de hardware ultrapassado. Muitos especializaram-se no arremesso de CD's mortíferos, ao melhor estilo de Xena(tm).
    Os Físicos estavam melhor preparados, pois dispunham de aparatos LASER de alta potência e equações indecifráveis, altamente incapacitantes.
    Os Engenheiros dispunham de planos de estruturas e fio eléctrico, com que fizeram bonitos papagaios.
    Os Químicos, esses, empregaram os seus conhecimentos na síntese de venenos, explosivos e compostos aromáticos altamente enjoativos, como o Limoneno. Muitos foram os soldados das forças invasoras que sucumbiram a um ataque de vómitos antes de chegarem sequer ao 3º piso do Edifício Departamentóide de Química.
    No plano global, a invasão estava a revelar-se morosa e difícil. E Cherneboff, do alto do seu trono laranja, inquietava-se com pensamentos contraditórios. "Será que fiz mal em subestimar estes mandriões? Está na hora de passar ao Plano B!"

    As novas contingências foram postas em prática. O que se seguiu foi hediondo...

    (continua...)

    quarta-feira, janeiro 21, 2004

    Apenas sentindo... (1ª parte)

    Levantei uma perna para o lado de fora, ouvi uma leve ondulação no tornozelo, um vulto sombrio reflectia no chão negro…

    Caminhei olhando o céu escuro que cobria todo o fundo à minha volta. Os pés molhados e frios eram as únicas imagens que pairavam nos meus sentidos. Uma nuvem encobria a Lua Nova. Não havia objectos, nem cores, só sons.
    Ao longe ecos dos meus passos faziam esvoaçar aves, (estranhas aves essas que das asas pareciam levantar o céu). Comecei a sentir uma aragem quente, como se de alguém se tratasse. (Ainda bem que a ave me fez a rasante, ao menos trouxe-me um sinal). Mas qual sinal? Seria exactamente o quê? Na ondulação de regresso a água não trazia nenhum acrescimento de temperatura!..Ela regressava?! Haveria terra sólida ao pé? Ou seria apenas uma rocha, ou alguém com os membros já gelados? Não fazia sentido... Contudo segui a direcção das ondinhas, calculando o tempo de regresso, ou seja, o dobro da distância tendo em conta a velocidade que estava a tomar... Estavam a demorar cinco minutos, sendo a minha velocidade média seis quilómetros por hora, estaria algo a 250 metros! O que seria?
    Continuei, mas mais cauteloso, redobrei a minha audição, o silêncio fazia eco no meu consciente. Passo a passo calco algo seco, uma rocha fria como nunca tinha pisado nenhuma, sentia uma superfície lisa como de vidro se tratasse. Continuei mais devagar para não escorregar, até que paro quando sinto uma aragem a vir na minha direcção, estendo um braço, algo estava a tocar-me. Estava gelada, a mão, algo me tinha tocado por uns instantes e desaparecera. Apenas tinha dado para perceber que esse ser não libertava cheiro nem fazia ruído a caminhar, mas o mais incrível foi não ter deixado um rasto de vento…
    (...continua...)

    domingo, janeiro 18, 2004

    Comentários de volta

    O servidor antigo desapareceu, contudo o responsável por ele fez cópias de todos os comments até à data e disponibilizou-os noutro servidor (haloscan).
    Com esta mudança fica aqui o novo incentivo para continuarem a participar no blog.

    domingo, janeiro 11, 2004

    Hecatombe - Parte I

    Era Verão e tinha acabado de estalar a Grande Guerra Académica. O seu epicentro situava-se, precisamente, no Instituto Científico-Tecnológico da Outra-Banda.

    Foram muitos os que lutaram contra fogo de artilharia e terríveis torpedos mortíferos, mas ninguém se livrou de os albergar no rabinho.
    No fim, as baixas ascenderam aos milhares. Contaram-se 852 euro-ogivas despoletadas no primeiro impacto.

    A primeira ala a cair foi a do Directorato. O líder não resistiu à explosão de um óbus e esvaiu-se em sangue, com um estilhaço alojado na região perianal. Os resistentes suspiraram de alívio. O chefe do Directorato era um traidor e todos o sabiam. Afinal, fora ele que aceitara a repugnante proposta do regime de Cherneboff. A sua morte em combate desobrigava-os de uma vingança sangrenta.
    Um grupo de milicianos associativistas ainda tentou segurar o perímetro da ala D com rolos atrás de rolos de arame higiénico, mas de nada serviu contra a couraça dos implacáveis Rhino-comandos, unidades blindadas de combate politico-estratégico. Esta tropa de elite fora enviada pelos burocratas de Cherneboff, servidores fiéis da ditadura mental que este instituira com a sua matrona, a Dama Quebra-Ossos, assim chamada pela sua semelhança com esta ave necrófila, quer em aspecto quer em rapacidade.
    Parte da Resistência encontrava-se barricada no edifício do Refeitódromo, visto que o ataque surpresa fora iniciado à hora de almoço. A rapidez de reacção fora vital para conservarem as vidas, mas agora que a epidemia alastrava pelas hostes do Exército de Libertação Académica, os soldados maldiziam a sorte da escolha. Os corredores fétidos das instalações há muito que se encontravam fora de manutenção, e a péssima qualidade das rações só piorava a saúde e o moral das tropas.
    No 7º Templo da Ilógica a situação não era melhor, com as suas paredes envidraçadas. O fogo de metralhadora lançou uma chuva de estilhaços dilacerantes sobre os refugiados.
    A maioria saía de Análise I, e encontrava-se armada com apenas os cadernos. No entanto, os poucos que traziam a sebenta faziam dela uma arma temível. Lançadas com pontaria faziam mais vítimas que uma granada de fragmentação, tal a toxicidade do seu conteúdo. Os alunos mais corajosos corriam de encontro ao inimigo declamando trechos das suas páginas, semeando caos e insanidade nas fileiras.
    (continua...)

    terça-feira, janeiro 06, 2004

    Visto a mitra, protejo a cabeça,
    Sem rumo certo começo a andar
    A meio do caminho vejo-os vir aí,
    Os anjos da morte estão-me já a ladear.

    Conduzem-me por entre vales e planícies
    Até que numa colina encontramos um carvalho velho,
    Um cepo, mera memória da glória de outrora,
    Um carvalho que alguém cortou pelo joelho!

    Ladeavam-me duas grandes vieiras
    Onde eu via esconderem-se ninfas de alva pele.
    Só ao crepúsculo comecei a sentir
    A fresca relva sob os meus pés descalços.

    Eis que chegados ao cimo da colina
    Olho em redor e vejo as montanhas rugosas,
    de eternas fragas construídas,
    As verdejantes florestas dos imortais
    Pilares edificados
    As eternas planícies de infidável erva
    Até onde a vista alcança.
    Com o Sol, esse eterno presente,
    A despedir-se lá ao fundo, em tons de laranja e vermelho
    E um mortiço raio amarelo por entre as nuvens.

    Sinto uma corrente de ar frio percorrer-me o corpo,
    Dos pés à cabeça, arrepiando-me os negros pêlos por onde passa.
    Oiço uma doce melodia de liras erguer-se,
    Enquanto os anjos tiram folhas do cepo, que vejo ser agora uma pedra.

    Vagueio sem rumo em redor da fraga
    A música cresce e faz-me sonolento.
    Abrem-se as vieiras, ajoelho-me junto à fraga e abraço-a...
    Não vejo de uma vieira sair um outro anjo,
    De púrpura vestido e longos cabelos loiros ao vento,
    Caminhar para a outra vieira e dela tirar,
    Um machado negro, que começa a afiar!
    A música sobe de tom, aumentando de ritmo
    O sono apodera-se de mim enquanto
    O último raio de sol se apaga da minha face,
    Estrelas faíscam à minha frente quando de repente
    Param e sinto o frio apoderar-se de mim.

    Vejo a noite como se fosse dia
    Vejo dois anjos de mantos negro pegarem em mim
    E vejo-a, alta e alva no céu,
    O meu destino, a minha eternidade.

    9/Jan/2003

    Sonho Solitário

    No princípio era o nada. A escuridão, a penumbra, o autêntico vácuo, esse grande buraco negro, desprovido de Deus e de matéria. Estava sozinho! Ninguém me amparava, nada me sustinha e permanecia imóvel nesse pano preto.

    Depois vieram um a um e foram-se um a um, zunindo pelos ares, uivando veementemente pelo meio das copas das árvores, que ardiam com chamas azuis... E a calma reinava nesse mundo que repentinamente surgira do nada. E o nada tornou-se tudo! Tudo o que pode haver na vida, desde os pássaros que cantam até ao penedo que ribomba montanha abaixo, liberto da sua inércia pela tectónica deste cobra-de-água suspenso no meio de tantos pirilampos luminosos, na noite interminável.

    Ping, ping, pinga a água das folhas verdes, vazias de vida por fora e cheias de uma vivacidade interna que nem amanhã compreenderei. Gostava de ser uma delas, para morrer novo, quando no auge da minha beleza viesse um bulldozer e me esmagasse, poupando-me assim o ser martirizado pela raça humana.

    A raça humana e as suas certezas provocam-me vómitos!... Antes morrer pelas mãos de um Homem do que ser um deles. Safa!

    Sempre com a mania das certezas e a vontade de brincar a Deus! Reúnem-se todos em pequenos grupos que se juntam em determinados locais e falam mal de todos os que não são como eles e, se há entre eles alguém que não gosta do que ouve e se eleva para expressar o descontentamento, esse então está morto para eles e migra para o limbo do esquecimento, onde repousam todos os que não procuram inimigos.

    Olho lá para baixo e as plantas vão morrendo, provavelmente envenenadas pela Natureza Humana, que tudo sabe, tudo tem e tudo pode.

    No princípio era o Nada...

    Depois veio o Homem...

    E no final não ficou nada nem ninguém, fui só eu que afinal abri os olhos e me vi sozinho, sem ninguém!

    Só...

    Sonhando!...

    segunda-feira, janeiro 05, 2004

    Liberta-me

    Liberta-me desta fraqueza,
    Porque só tu o podes fazer.
    Devolve-me a pureza
    Para que volte a renascer.

    Salva-me da tentação,
    Deste meu vil errar,
    Do horror de me perder;
    Do ilusório prazer
    Que não passa de dor.
    De um forte enganar
    Que me trai a mim,
    Que não é amor
    E que descamba assim
    Na maior solidão.

    E se a tua mão não me tocar
    Então voltarei a errar,
    A errar,
    A errar...

    Liberta-me desta agonia,
    Só restas tu para o fazer;
    Para eu ter a magia
    Que pacifica o meu ser.