segunda-feira, agosto 05, 2013

Lu

"Lu, queres vir ao Budapeste?"

“Vou lá ter mais tarde!” – E sabia perfeitamente que não ia… Só queria mesmo sair dali. Do escritório com o cheiro pesado a humanidade! Se é que se pode chamar escritório às instalações do call center no Saldanha. Seguiu pela rua do mercado até à Praça José Fontana, um ritual que cumpria praticamente todos os dias. Gostava da inversão de papeis entre o mercado e o Liceu Camões. Quando passava pela manhã, sempre atrasada para o trabalho, e o Liceu era como um fantasma do passado, quase a preto e branco, e o mercado a fervilhar de vida. O cheiro de peixe que a muitos dá náuseas era para ela reconfortante. A azáfama dos comerciantes uma razão para, também ela, se aplicar com todas as forças no seu trabalho. E “ao fim do dia”, o mercado já fechado… O sentir de dever cumprido. Aqui e ali sobrava ainda um ou outro comerciante, nunca chegou a perceber se os que se arrastavam entre um café e uma mini eram os que venderam tudo ou os que não venderam nada. As suas expressões faciais eram de outro tempo e, para ela, incompreensíveis. Eram como pessoas gastas, ou desgastadas. E o Liceu, o Liceu… Um brotar de vida… Uma atmosfera carregada de hormonas! Aqui e ali roubava-se um beijo, sussurravam-se promessas… Rodava um cigarro ou uma ganza! Faziam-se planos… Queria parar um pouco! Demorar-se ali naquele quiosque ao lado do coreto, e educar aqueles míudos e míudas… Ensinar-lhes numa tarde o que tinha demorado décadas a aprender! E depois olhava-os novamente, e com desdém concluía que não valia a pena! O mundo será sempre uma espiral de contornos tão suaves que parece um circulo.

Consultou o relógio: “Ainda é muito cedo para ir observar os travestis ao Conde Redondo.”

E aquele rapaz sempre: "Lu, queres vir ao Budapeste?", e ela: “Não me dá jeito, tenho que ir ao Martim Moniz comprar caril!”

Deixou-se escorrer lentamente pela Duque de Loulé, e foi observando as entradas aparentemente fechadas dos bares de strip… Tinha uma certa atração inexplicável por estes locais. “Que tipo de pessoas trabalham aqui? Que tipo de pessoas vêm cá? Os que cá trabalham será que também se sentem subvalorizados no emprego, terão contratos a prazo, será que têm ordenados em atraso, ou dívidas ao fisco? Será que pensam em emigrar? E, os que cá vêm? Será que riem ou choram como as pessoas normais? Que é que procuram aqui? Haverá mais ou menos clientes em época de crise?” Foi deslizando nas ruas paralelas à Avenida, e as pedras da calçada diziam-lhe “Olá, estás muito tristes hoje!”, e ela olhava-as desconfiada como se fossem um produto da sua imaginação, e respondia “Não, estou só desanimada! Quero mais! Posso querer mais?”. E as pedras não respondiam, limitavam-se a desalinhar-se e fazer-lhe o caminhar mais desconfortável. E, quando se deu conta, já tinha passado as Portas de Santo Antão. Na primeira tasca de Ginginha um velho de face enrubescida atirou-lhe um piropo ao qual ela nem se deu ao trabalho de responder. Não tinha sequer a energia para esboçar o sorriso ténue da praxe.

Foi como se lhe tivesse dito: "Lu, queres vir ao Budapeste?" – E ela queria responder: “Em primeiro lugar o meu nome é Lúcia, herdei-o da a minha avó e gosto muito dele! – A mania de certas pessoas encurtarem o nosso nome sem que isso lhes seja sugerido só pode ser preguiça… Ainda por cima é um nome bastante bonito… Será que custa assim tanto dizer Lúcia? São só cinco letras: L-U-C-I-A, Lúcia, como a minha avó!”

Quando chegou ao Martim Moniz, o sol das quatro da tarde ainda afastava os clientes, e até os comerciantes. Lembrou-se da sua avó e de quando ela a trazia cá para comprarem especiarias. Cresceu em casa da avó, por razões que desconheceu até à adolescência. Era como se fossem o prolongamento uma da outra, e sorriu orgulhosamente ao recordar todas as vezes que os comerciantes desta praça e de outras sugeriam que ela tinha o mesmo feitio difícil da sua avó. Não era bem um feitio difícil, a avó era uma mulher forte e independente, cada ruga na sua face um desafio ultrapassado, e muitas pessoas não lidam bem com isso. Tinha orgulho em ter sido criada por aquela mulher de mãos ásperas e coração mole. Tinha a perfeita consciência que a sua avó era um exemplo excelente, e talvez por isso ainda hoje lhe custasse comprometer essa independência. Da avó herdou também as características físicas: a pela clara e macia, os olhos azuis, os caracóis pretos e a meia dúzia de sardas em cada bochecha. Não admira que muita gente achasse que eram mãe e filha. E, vejo-me obrigado a acrescentar, que muitos lhe atirassem piropos.

E aquele moço (era assim que a sua avó chamava aos rapaz novos) sempre: “Lu, queres vir ao Budapeste?” – e, ela: “Não, caralho! Não quero ir ao Budapeste, nem ao Roterdão ou ao Copenhaga… Quero que me deixes em paz!!! Quero ir a Lisboa! Estás a ouvir? Quero ir a Lisboa! Quero passear nas colinas como se fossem um escorrega gigante num parque infantil só para mim. Quero, sei lá! Olha: quero apaixonar-me por um estrangeiro num miradouro qualquer!!!”

Seguiu pela sombras das ruas estreitas da Mouraria para o miradouro da Senhora da Graça. Pelo caminho não pôde deixar de reparar que estas ruas tinham uma certa semelhança com o seu cérebro, ou pelo menos com a forma com que o imaginava. Ruas estreitas e labirínticas sempre aos altos e baixos! Aqui e ali uma praçeta… às vezes velha e decrépita, outras recém-recuperada com um aspecto ultra moderno. Decidiu ignorar a voz da sua cabeça a perguntar: “Lu, queres ir ao Budapeste?”. Tinha passado recentemente dos trinta anos, e já não tinha paciência para estas coisas!

O Miradouro da Graça tem uma chegada bastante interessante: de um lado da rua está a igreja (ou convento), e do outro um jardim que é praticamente um prolongamento da praça do miradouro. Esta profundidade é uma espécie de antecipação do miradouro em si… Ao percorrer esta rua, o coração de Lúcia saltava-lhe do peito, e ela lembrava-se de todas as vezes que percorreu esta mesma rua! De como as pedras se alinhavam para lhe suavizar a passagem ou desalinhavam para que fosse ainda mais sofrível chegar àquele miradouro. Gostava muito da cidade vista de aqui. Sentia um aconchego inexplicável. Um lugar mágico, protegido a norte pela senhora do Monte e a sul pelo Castelo de São Jorge. A cidade a perder de vista no horizonte. Vinha cá sempre que podia, e possivelmente já cá veio com todos os estados de espírito imagináveis! Tinha pouco mais de trinta anos, e muitas histórias para contar, e estas pedras da calçada eram protagonistas em muitas delas! Mas não eram essas histórias que a traziam cá hoje! Hoje estava ali pela cidade, por esta cidade que adora e nunca quis deixar.


Num gesto tímido, pediu um Porto no quiosque antes de trocar um olhar com a cidade. Respirou fundo, pegou no copo e foi-se sentar no muro. Quando repousou os olhos sobre a cidade ouviu sinos como se chegasse ao paraíso. Cinco da tarde!