segunda-feira, março 11, 2013

Ela quer...


I - Um Almoço


"Então aqui dás-lhe espaço para ela pôr o molho." disse Dick.
"E isso vai correr bem?" perguntou Alcino, algo assustado. A verdade é que ver aquela cena era quase caricato. Alcino tinha uma musculatura desenvolvida no estaleiro, era um tipo bem falante que raramente se atrapalhava e no entanto ali estava ele com medo da proposta de um tipo de camisa havaiana aberta quase até ao umbigo.
"Não te preocupes pá! Aquilo é feito à base de gelado. Vais ver, no fim até gostas e não queres outra coisa."
"E quanto é que recebo por essa refeição?"
Dick não conseguiu evitar um sorriso. "Para cozinhares o almoço é o normal, as como espero que desta vez haja mais gente a querer provar o prato, dou-te cinco porcento da caixa."
"Não me fodas pá, cinco porcento são trocos! Sabes que a Marisa acha pouca piada a estas coisas e que eu já me reformei há uns anos. Se não fosse por sermos amigos, esta conversa nem estava a acontecer."
Dick estava a achar pouca piada à conversa de feirante. "Tens razão... Por sermos amigos é que esta conversa está a acontecer! Sabes quantos putos matavam só pela visibilidade? Achas que és o único com capacidade para fazer este trabalho? A Marisa tem problemas? Convida a gaja pá! Consegues a Marisa e levam cada um metade e sete porcento. Se aceitares, Sábado, pequeno-almoço, às dez, no estúdio."

II - Uma Cozinha

O estúdio era uma vivenda na Margem Sul. Uma casa de dois andares com garagem e uma sebe por cima de um muro. Quando Dick, acabado de chegar a Portugal, a comprara não haviam ainda nem a sebe nem o muro, mas o isolamento de que dispunha era aquilo que ele considerava fulcral no desenvolvimento do seu pequeno reino. Num mercado onde não tinha conhecimentos, nunca passara de um peixinho pequeno, mas bastou-lhe mudar para um aquário onde se percebia ainda menos para se tornar um tubarão. Fora nesses tempos que conhecera Alcino.
O muro que servia de vaso à sebe não tinha sido pensado como tal. Era, isso sim, para ser um muro de três metros até que aquele filho de mãe cabo-verdiana e pai português passa por ele, as mãos cinzentas do cimento que carregava nos baldes, e diz-lhe que "um muro mais baixo com arbustos por cima chama menos à atenção". O encarregado atirou-lhe logo um "vai trabalhar, preto do caralho" e Alcino foi. No dia seguinte o encarregado foi dispensado e o projecto alterado. Quando a Vivenda do Americano ficou pronta Dick pediu para falar com Alcino.
"Porque os arbushes?" perguntou num misto de português e inglês da Califórnia.
"Porque fica exótico e as pessoas olham menos." Respondeu Alcino num inglês esforçado, continuando "Assim parece mais casa de emigrant."
"Speak english?" perguntou meio admirado Dick.
"I must" respondeu-lhe Alcino. "Sou demasiado claro para não levar porrada e demasiado escuro para ser dos melhores da turma. Se não arranjar ferramentas não me safo."
Como Alcino se safava bem, Dick mudou para a sua lingua materna. "Então e porque achas que não quero chamar à atenção?"
"Os únicos sítios onde os muros são altos para tapar a vista de dentro para fora, são as prisões. Acho que ninguém vinha para aqui transformar uma casa numa prisão."
"Porque achas isso?"
"Porque é que o projecto mudou? Posso não saber o que se passa exactamente, mas sei que não é para se ver de fora para dentro. Como não é para se saber, eu prefiro que não me digam. Posso ir?"
"Quantos anos tens?
"Dezasseis."
"E trabalhas nas obras?"
"Só nas férias e aos fins de semana e tardes livres."
Dick parou um pouco a pensar. "Queres fazer outra coisa aos fins de semana?"

III - Os Cozinheiros

Foi com a promessa de que o que fariam apenas passaria a fronteira do legal pontualmente que Alcino começou a trabalhar com Dick, o Americano da Fonte da Telha. Essa promessa rapidamente passou a ser um affair constante com o lado de lá da lei e com o aprofundar da relação Alcino tornou-se o mais desejado cavalo da cavalariça em que o andar de cima era tratado por "o estúdio". A Vivenda do Americano pode-se gabar de ter sido o último sítio em que Alcino acartou baldes de massa. As tarde rapidamente passaram a ser passadas em ginásios onde aquele seu tom de pele eternamente bronzeado não era nem escuro demais para ser um "preto do caralho", nem demasiadamente claro para passar despercebido. Era simplesmente o tom correcto.
"Vai aos ginásios mas não abuses daquela merda." recomendava-lhe Dick, com um sorriso trocista "Ainda ficas para aí todo inchado e depois não te consigo arranjar nada." Alcino ria-se.
Alcino era um cavalo de tal forma apetecido que rapidamente se tornou um frequente. Como em todos os casos, Dick e Alcino começaram a falar mais e os conselhos de Dick rapidamente passaram a barreira do que fazer nos ginásios.
"Como não sabes o que escolher?!" irritou-se um dia "Estás a fazer mais dinheiro num mês que os teus pais numa vida. Sabes donde isto vem? Se sabes vais para uma de duas coisas: gestor ou advogado! Sim advogado, ou pensas que isto é só chegar aqui e já está?" O susto provocado por esta explosão foi tal que Alcino escolheu Direito. Um ano depois mudou para gestão. No final do curso o primeiro emprego foi numa pequena agência bancária em Almada. Ia para longe dos pais, mas ficava mais perto de Dick, que por esta altura já tinha muitos outros cavalos de corrida, pelo que Alcino acabava por participar em menos provas, mas dava-se ao luxo de escolher em quais participava.
A lealdade que sempre demostrara para com Alcino acabou por compensar naquela noite em que Alcino lhe ligou a dizer para esvaziar as contas todas. Pouco mais de um mês havia passado quando o banco faliu. Dick percebeu nesse dia que nunca poderia pagar o favor que contraíra.
Quando novos donos finalmente tomaram conta do banco Alcino encontrou-se de novo numa situação em que era demasiado escuro e demasiado claro. Demasiado escuro para estar à frente de uma agência e demasiado claro para ser promovido, Alcino viu-se remodelado numa rescisão amigavelmente forçada. Para Dick era bastante claro que não podia ficar parado e o cavalo dele precisava de voltar à pista.

IV - Os Temperos

Marisa sabia daquela vida, mas pensava que já era passado. Seria de esperar. Fora numa das, já na altura esporádicas, colaborações que o conhecera. De facto, não fora aquela a forma que idealizara para contar a Alcino que estava grávida, mas face ao que estava em causa, tinha de ser finalmente dito. No final acabou por quase ter de o obrigar a aceitar aquela participação. Com o cheque do subsídio cada vez mais curto, e Alcino obrigado a fazer a contabilidade para uma organização sem fins lucrativos para o receber, aqueles sete porcento davam muito jeito com o bebé a caminho. Não seria certamente nenhuma fortuna. O advento da internet tinha multiplicado a concorrência a qualquer idiota com um telemóvel, mas enquanto uns negócios iam caíndo, outros floresciam e Dick, se algo tinha mudado nele, é que agora andava mais descontraído e a olhar menos por cima dos ombros.

Quando no Sábado soube da gravidez ofereceu dez porcento. "Não fico mais satisfeita por isso..."
"Não seja assim Mary, eu sei que não percebes mas é a minha forma de dizer obrigado."
"Eu conheço os teus agradecimentos..."
"Esse tipo era um idiota! Diz lá que não ficas melhor com o Alcino? O Alcino não é um idiota e tu é que me devias agradecer em vez de andares para aí a segurar grudges."

"Quem é a miúda?"
"Não conheces. Esteve aí uma vez para um casting e não achei nada de especial, mas tem o nome e o sotaque certos para uma coisa que eu cá sei!" Disse o americano visivelmente satisfeito consigo mesmo. "Antes que perguntes, neste caso interessa."
"E como se chama essa promessa?"
"Filipa, mas prefere que lhe chamem Pêpa."

"Tu convidaste a..."
"Não," interrompeu "mas quase! Esta veio cá em Setembro, precisava de um extra para as propinas e tal, mas não foi nada de especial, como te disse. Só que quando vi o vídeo da outra lembrei-me logo desta. Falei com o Tavares, ele fez-me um guião em dois dias e cá estamos hoje."

"Sabes Dick, já me sinto melhor."
"Eu sabia que te ias divertir."

O expresso 20 *

Sábado de manhã...

A gare apresenta um aspecto pacato... Longe do rebuliço caótico das tardes que marcam a véspera do fim de semana. Na mão o rectângulo azul "viatura 20".
Eis que chega... dez minutos antes... e os poucos transeuntes que deambulam junto à linha 3, agarram em seus volumes, dirigindo-se à bagageira. Entretanto alguns outros abandonam a porta dianteira... A maioria para uma pequena pausa para uma bucha matinal.

Levemente zonzo, fruto do parco pequeno almoço coloco o pequeno saco à direita, mirando os paralelepípedos brancos que me traumatizarão toda a viagem, arrumados a régua e esquadro na parte mais traseira da bagageira lateral. Bilhete cortado e é hora de entrar... A viatura novinha em folha... o contraste do tempo. Ao contrário de muitos outros horários aquele, expresso provinciano direi, troca os anos da sua própria existência, tão novos quanto o cheiro a madeira envernizada e estofos quase por estrear, pela idade avançada dos seus frequentadores.... Acedo ao meu lugar, junto à janela... estranho o quente do estofo... Provavelmente alguém a trocar o conforto do campo pela semi urbe coimbrã...

Aguardo pacientemente o meu companheiro de viagem, à medida que o expresso vai preenchendo paulatinamente os lugares...

Existe sempre uma ténue e ridícula esperança na mente de um homem durante este processo... Quilómetros e quilómetros de alcatrão demonstraram-me sempre o quão agradável é a presença de um jovem rosto feminino ao lado... Nestes casos a viagem é sempre silenciosa e, garanto excelso leitor, sempre inocente. Não tenho particularmente um interesse específico por um rosto ou corpo jovem e esbelto junto a mim. Mas a presença de uma jovem ao meu lado trasmite-me uma sensação da paz inexplicável... Como se o melhor da natureza me escolhesse a mim, pobre ser, para desfrutar da sua companhia por umas horas rotineiras da minha vida.

Mas não... um rosto vermelho e enrugado entra no veículo quase em simultâneo com outros rostos carregados de sabedoria, o leve cheiro da naftalina disfarçado pelo odor forte dos paralelepípedos da bagageira, um corropio de cestos e malas de mão encardidos pelo tempo. Um sorriso fita-me... depressa percebo porque o meu banco ainda estava quente... Um pedido de licença e o pouco jovem senhor marcado pelas agruras da vida, mas com o sorriso castiço de tanta história por contar, quase sem palavras, acede a um lugar que talvez, esse sim, lhe pertença, a meu lado... O autocarro inicia o movimento e... conto paulatinamente os segundo até ao primeiro pretexto para o diálogo ser estabelecido... um mínimo pretexto...

...


...

50 km... uma vida ligada ao combate de fogos em edíficios
100 km... a rebeldia e os processos disciplinares
150 km... como os jornalistas dificultam a vida de quem tenta salvar a vida dos outros...

... Mas curiosamente e como por artes mágicas que só a sabedoria dos grandes comunicadores consegue ter, o tédio passa a diálogo, o diálogo a sorrisos, os sorrisos a gargalhadas e por instantes a ausência de um corpo jovem e esbelto dão lugar a toda uma cumplicidade que a sapiência da vida ilumina... e a manhã ganha um novo brilho, só atenuado pelo enjoo de um estômago que ronca, avivado pelo forte cheiro a leitão da bairrada, que provém de uns já esquecidos paralelepípedos na bagageira do veículo... Observo nauseado um documentário sobre sanitas de luxo que passa no ecran e tento esquecer a dor que se forma no estômago enquanto observo os prédios da capital...

Recuso educadamente a oferta de uma cerveja... O ar pela primeira vez austero daquele comparsa relembra-me a velha máxima de não recusar uma oferta... Mais enjoado que embriagado, aperto a mão, pela última vez, daquele estranho companheiro da bucólica manhã... o 20 abandona a linha 12...

E os pombos de Lisboa tornam-se reis e senhores da calma manhã de fim de semana...








* O presente texto, baseado numa experiência pessoal, é uma homenagem a APC e à sua obra "720".

domingo, março 03, 2013

Felicidade

Em poucas palavras defino felicidade,
Partilho sua pureza e harmonia em paixão,
Amo-a livremente na simplicidade,
Numa mágica e eterna benção do coração.