sábado, março 19, 2005

Contos do Exílio - O Regresso, parte III: O Mestre (conclusao)

- Essa missão tu vais aceitá-la, sabe-lo bem! - respondeu o Mestre, olhando-o directamente nos olhos, transbordando calma - Vais aceitá-la porque se não tivesses esperança de que surgisse tal oportunidade, já te tinhas matado ou deixado morrer há muito tempo.

- Que sabes tu de mim para afirmares tal coisa? - contrapôs ele agressivamente.

- O suficiente... Sei donde vens, algo que tu não sabes, e sei qual o teu destino, algo de que foges e te recusas a ver...

- Como posso ver o que não se vê?

- Limita-te a acreditar! - exclamou o Mestre - Todo este tempo te remoeste com pensamentos de culpa e vingança, só nunca acreditaste realmente nessa vingança que te consumia por dentro. - Fez uma pausa e continuou. - Alguma vez paraste e refletiste sobre a forma como concretizarás a tua vingança?

- Sim... - E um brilho de maldade e raiva encheu-lhe os olhos - Muitas noites sohei com que lhe faria quando a reecontrasse...

- Não! Não te pergunto o que lhe farias, mas sim como te encontrarias com ela... - levantou-se num repente e apontou uma montanha no horizonte - Vim ontem daquela montanha. Por trás dela o Sol irá deitar-se hoje e por trás dela repousa o Clã dos Caminhantes. - Os olhos do Exilado brilharam de entusiasmo à menção do seu Clã. - Quando nós repousarmos debaixo do olhar atento da Deusa-Lua, na tenda dos anciãos a Vidente preparará o futuro da tribo, o futura em que a Discípula comandará a tribo! Queres realmente isso?

Ele não respondeu. Sentia arde em si um fogo invisível. Sentia as pernas a retesarem-se e os punhos a cerrarem-se, salivava sem cessar e a lembrança dos nomes das responsáveis pelo seu Exílio despertavam nele o que de pior o seu ser tinha.

- Exilado! - Gritou o Mestre, pegando no cajado que repousara até então ao seu lado. - Exilado, acorda da Fúria!

Só então se apercebeu que cerrara os punhos com tanta força que havia cravado as unhas na sua própria carne.

- Desculpa... Não me consegui controlar quando referiste...

- ... Eu sei! - interrompeu o Mestre. - Não o devia ter feito, mas não pensei que a Fúria estivesse ainda tão desperta em ti.

- A Fúria?! - perguntou o Exilado, espantado com tudo o que o Mestre dizia.

- O feitiço que a Vidente te lançou. Levou-lhe uma Viagem a urdi-lo e quando finalmente o deu por terminado, na primeira noite que passaram no Grande Vale, deixaste de responder por ti. Passaste nessa noite a agir em conformidade com os desejos dela e ela incutiu em ti o espírito do Lobo. Podes não o saber, mas tu não nasceste com o espírito do lobo...

- Com que espírito nasci então? - interrompeu ele.

- Não interessa! Nos dias de hoje respondes só pelo Lobo. Esse espírito foi-te dado para que tu a odiasses a ela e à sua astúcia de raposa...

- Como se contraria esse ódio? Voltando ao espírito antigo?

- Estou aqui para te ajudar a recuperares o espírito do Morcego, o caçador das trevas, que sem ver alcança sempre a sua presa, que fazendo barulho ninguém o ouve.

- E como é que isso me ajuda a regressar à tribo?

- Uma coisa não invalida a outra! Arrisco mesmo dizer-te que sem o teu espírito não passas de mais um dos seus instrumentos dela; com o teu espírito tornas-te um lutador e será tua a vontade de ocupares o teu lugar dentro do teu Clã!

Fez-se um silêncio pesado, apenas se ouvindo esporadiacamente o crepitar do fogo elevar-se acima da respiração pesada de ambos.

- E se eu quiser ficar com o espírito do Lobo?

- Estás sempre sujeito à Fúria. Momentos em que te tornas incontrolável, em que perdes a noção de onde estás e o que és; apenas a morte, o sangue e o saciar a fome interessam nesse instante. Será a primeira fraqueza que ela vai explorar. Sentes-te mesmo capaz de mudar a esse ponto e correr esse risco?

- Sinto! Na prática já não sou o que era antigamente. Teria de renascer para que me tornasse no que era. Mais vale trabalhar aquilo que me tornei e descobrir as minhas falhas, para que ela não se valha delas.

- Tens então de escolher quem serás daqui para a frente.

- Corrige-me as falhas e torna-me no Homem-Lobo!

FIM do capítulo III

Próximo Capítulo: A última vela (Homenagem a Blind Guardian)

quinta-feira, março 17, 2005

Gritar ao mundo
e não ter voz para falar
Querer fugir
e não ter pernas para escapar

Sentir perdido por entre a rima forçada
Dizer "Desculpa mas não se passa nada"
Gritar impropérios a medo
Ter sonhos mas desistir cedo

Gritar ao mundo
e não ter voz para sonhar
Querer fugir
e não ter pernas para andar

Querer mostrar fé mas nunca a ter
Mostrar ter força mas nunca o ser
Envolver o mundo numa especulação
Ser firme mas tremer a mão

Gritar ao mundo
e não ter voz para gritar
Querer fugir
e não ter pernas para gatinhar

Querer tudo e não ter nada
Simplesmente ficar
e deixar-me acabar

segunda-feira, março 07, 2005

Contos do Exílio - O Regresso, parte III: O Mestre (cont.)

Ficou então sozinho com a sua refeição. Enquanto tomava a sua refeição, sentia que o mundo era agora um sítio diferente. Os pássaros cantavam nas árvores, o orvalho que pingava não era mais uma forma de saciar a sede, mas também uma forma de refrescar o rosto pela manhã. Encontrava-se entregue a um sentimento de espanto quando o velho regressou. Pela primeira vez apercebeu-se da real estatura do velho. Não era muito alto, talvez pouco mais alto que os seus ombros, tinha os cabelos lisos e estranhamente curtos e brancos como neve. A sua cabeça era redonda e os olhos pequeninos mal se viam, por se encontrarem sempre semi-cerrados. Possuia ainda uma longa e estreita barba branca, que lhe tocava o meio do peito.

- Não sei se já me apresentei. - começou por dizer - O meu nome é Mestre. Assim como tu foste um dia baptizado Exilado e outros que conheceste com os seus, assim eu recebi este nome. - Sentou-se ao lado dele e ateou o lume. - Vês esta fogueira? Ontem ardia de tal maneira que parecia ter nela todo o calor do mundo. Hoje, quando acordaste, estava morta, fumegando e pouco mais, no entanto agora voltou a pegar fogo e se a alimentarmos tornar-se-á um clarão a irradiar energia e calor. - Fez uma pausa para colocar mais uma acha na fogueira. Olhou para ele com os olhos suficientemente abertos para ele se aperceber do seu negrume, e disse então: - Assim é também a vida do Homem! - e os seus olhos faíscaram!

- O que é que isso tem a ver com o tu estares aqui? Como é que isso se relaciona comigo?

- Meu caro... - hesitou - Na verdade, tem tudo a ver contigo! - sorriu - Quando nascemos todos nós temos uma missão e todos os nossos passos nos conduzem para o momento em que vamos ser chamados a realizá-la. Não importa os empurrões que nos dão ou o quanto fugimos dela, invariavelmente acabamos por ter de optar entre cumpri-la ou não a cumprir. A minha missão é estar aqui, agora, contigo. A tua... revelá-la-ei mais tarde, porque só a ti te cumpre realizá-la ou não!... - dizendo isto calou-se e ficou à espera, perscutando-o com aquele olhar escuro e profundo.

- Mestre, - começou o Exilado - tudo o que dizes é muito bonito. De certa forma lembra-me a minha vida passada. - hesitou - Mas essa já passou! Com ela muita dor, muita revolta, muito sofrimento... - Ia acrescentar muitas pessoas, mas não foi capaz. - A tua preença faz com que as memórias do passado não despertem em mim uma fúria selvagem, nem causam a amargura das noites de luar. Assim é a tua missão porventura fazer-me esquecer tudo isso e devolver-me a minha humanidade?

- A tua humanidade já te foi devolvida. No momento em que abriste a boca e dela saíram palavras, aí recuperaste a tua humanidade! - Pareceu dizer a frase colocando um particular ênfase em "tu" e "tua". - A minha missão, Filho da Montanha, é fazer com que não esqueças nunca as amarguras da vida pelas quais passaste. A minha missão é fazer com que retornes ao teu clã e assumas o teu lugar como orientador da próxima geração de Caminhantes!

- Essa missão eu recuso-a! - interrompeu ele, num grito e com os olhos a arderem furiosamente.

(continua)

sábado, março 05, 2005

E é na ontologia deste amor
Que me descubro
Fragmentada, dividida
Pela mão de outro
E no frémito das horas
Sinto o toque da saudade,
Que crava no meu rosto
A métafora do que és
Encarnada no que vivo
E nas palavras que talhaste
no meu corpo,
A epopeia de um amor clandestino