quinta-feira, janeiro 27, 2011

O Cruzeiro (pt. 2)

“Que significam?” perguntou-me Marlene quando me sentei na berma da cama. O sol de final de tarde, em tons de laranja carregado, apelando à torpeza dos sentidos, ilumina a cabine da ruiva. Em simultâneo com a pergunta sinto uma mão a passar-me nos ombros. Que significam dois corvos tatuados num norueguês? Pergunto-me, completando a pergunta dela. “São os corvos de Lisboa! Passo cá muitas férias e decidi levar uma recordação da cidade.” Minto-lhe, com um sorriso que grita falsidade.
“Parvo… Que significam? Ou simplesmente gostas de corvos?” insiste. Hesita. “Bom, em várias culturas os corvos são vistos como uma ligação ao mundo dos mortos. Na mitologia nórdica, existem dois corvos em particular, Huginn e Muninn, que são uma forma de comunicar directamente com Odin, o líder dos deuses.”
“E tu precisas de comunicar com Odin?” pergunta, não sem evitar uma certa entoação de escárnio. Ontem mal conseguia articular duas palavras sem ficar mais vermelha que o sol que ilumina a cabina. Hoje dá-se ao luxo de gozar com o que não conhece. Pior! Eu deixo e rio-me com ela e gozo com coisas demasiado sérias e para as quais não a quero arrastar. Raios! Este tipo de preocupações são perigosas e já nem me refiro ao meu dia-a-dia, refiro-me a este cruzeiro em particular.
Ponho um ar o mais sério possível, levanto-me e enquanto visto os calções e a t-shirt digo-lhe que “Devia ir para o meu quarto arranjar-me. Se calhar é melhor jantares sem mim.” e saio do quarto. Não lhe dei tempo de me seguir, mas não estranho quando menos de um minuto depois ela me bate à porta do quarto. “Que foi aquilo?” pergunta entre o choque e a raiva. “Para saberes vais ter de pensar muito bem no que foi o nosso fim de tarde. Amanhã vou almoçar com um amigo no Funchal. Se o nosso fim de tarde foi só isso, um fim de tarde, não esperes por mim ao meio-dia no cais. Hoje tenho assuntos pessoais para tratar e se calhar não devia ter sido tão brusco contigo, mas amanhã falamos melhor. Pode ser?” Vejo ainda alguma indecisão e espero que tenha parecido estúpido o suficiente para ela não esperar por mim. Despeço-me e encosto a porta. 
Debaixo da cama duas malas iguais. Numa delas uma etiqueta diz Gungnir, a lendária lança de Odin. Na outra, Huginn e Muninn, os corvos de Odin, que em algumas culturas representam uma ligação ao mundo dos mortos. Lembro-me da conversa de ontem com o Malvindo e abraço-as…

Um náufrago não é um acontecimento habitual, mesmo para quem passa a vida no mar, mas um náufrago que, sem articular palavra, cura a bebedeira de Ernesto Malvindo, a “Fada-Madrinha”, é um náufrago que até a mim me interessa. E deixa nervoso! Procuro segui-lo, mas a comoção chamou gente de todo o barco e Marlene interpela-me. Não consigo dizer que não àqueles caracóis ruivos e ficamos para mais uma bebida, ou duas, ou três... Finalmente acompanho-a à porta do quarto. Carrego-a até à porta, pelo braço, seria um termo mais correcto. Pelo caminho peço a uma das tripulantes que me acompanhe “para a deitar”. Após alguma relutância fingida lá nos acompanha.
Perto do convés da tripulação cruzamo-nos com a flor-de-estufa. Parece que já entregou o seu peixinho a quem de direito e anda agora à pesca doutro atum. O olhar desiludido com que me olha diz-me que podia muito bem ter sido eu. Deixo a Marlene no quarto com a Joana, uma simpática tripulante que tem a nobre tarefa de fazer as camas. Quando ela sai do quarto pergunto-lhe se há camas muito desfeitas e ela responde-me que a dela “está sempre pronta para ser desfeita” porque “sempre serve de treino fazê-la”. O sorriso perverso que me deita fala por ela e convido-a para irmos até à amurada apanhar ar. Ela esquiva-se com um “é demasiado fresco. Sei de um sítio onde podemos apanhar ar mais quente.” Sigo a deixa e vou atrás dela.
O quarto dela fica na outra ponta do barco. No regresso ao meu barco aproveito mesmo o ar fresco da amurada. No salão o piano electrónico foi esquecido e continua a tocar. Dirijo-me lá dentro e vejo que na mesa de honra alguém se esqueceu de uma caixa de charutos. Cohiba. Reformulo, alguém com bom gosto esqueceu-se de um caixa de charutos. Tiro quatro, os que cabem no bolso da camisa e os fósforos que ali estão ao lado e continuo para o meu quarto. Na amurada, ainda junto ao bar uma voz rouca e familiar. “Fodidos, estamos todos fodidos”. O barman… Ou melhor outro barman “Tem de se ir embora. Qual o seu quarto?”
“Você não percebe? Estamos todos fodidos!” afinal parece que a bebedeira não está totalmente curada. Dirijo-me ao bar e digo ao barman que o levo para o quarto. Encosto-o à amurada e estendo-lhe um charuto.
“Cohiba! Sabes o que é bom miúdo!” Diz-me com o ar embevecido dos bêbados. Olha para mim um bocado à luz do terceiro fósforo. “Eu não te conheço de algum lado?” Respondo-lhe com o nome da cidade. “Berlim” Ele fica um bocado ocupado com o seu charuto até que me pergunta “Asgard?". Respondo afirmativamente. “Um caso complicado. Muito sujo. Mal feito. Não que a culpa fosse vossa, simplesmente não deu para melhor. Fiquei um ano fora da Alemanha e sabe Deus a quantidade de barrisque lá se beberam nesse ano…” Agora era um bêbado a recordar o passado, algo que eu queria evitar. Acima de nós havia pelo menos mais dois conveses, antes de se chegar à ponte. A última coisa que eu queria era alguém a ouvir conversas camufladas.
“Grande noite, esta!” soltei.
“Só te digo uma coisa: estamos todos fo-di-dos!” 
“Então porquê?”

Quando chego ao meu quarto, depois de deixar o Malvindo no quarto dele, tiro duas malas debaixo da cama. Verifico que o conteúdo está completo e amaldiçoo a hora em que não trouxe uma ligação satélite segura.