quarta-feira, dezembro 07, 2011

A Cidade

 Sopra um vento frio nas ruas como nunca senti. Mais do que os ossos é a minha alma que está gelada. O porteiro da pensão disse-me que havia por aqui um bar de vinhos porreiro,

 (Ainda pensei que porreiro para ele fosse na onda de com quem me viu quando cheguei à pensão. Quase que ficou ofendido quando o sugeri…)

mas a verdade é que não vejo nada. As portas são fechadas, os bares, se existem, são caves com janelas minúsculas e ninguém passeia nas ruas. Caminho um pouco mais até que vejo um ajuntamento. Gente bem vestida, bem disposta, conversa calorosa. Não é um bar de vinhos, mas é um bar. Entro e sento-me ao balcão. Peço uma cerveja e recebo um copo de meio litro cheio de uma cerveja fraquinha, mal gaseificada, mas fresca. Perco-me nos pensamentos

 (Na realidade não são pensamentos, são caras e com cada cara um pensamento de me aproximar, como o fazer, o que dizer, qual as respostas que vou ter. Todos estes pensamentos acabando nessa fatal e grande conclusão de que já estou demasiado enferrujado neste jogo.)
e nem me apercebo que um grupo se sentou ao meu lado e me tem estado a empurrar discretamente. Começo a ficar um pouco enervado até que uma rapariga, totalmente deslocada desta cidade, se mete comigo. A princípio não me apercebo, mas quando a vejo a olhar para mim, com duas cervejas na mão, acordo para a realidade.

 “Estás com ar de quem bebia outra!” diz-me num inglês com sotaque de estrangeira. Como se não chegasse a baixa estatura e o cabelo preto para o denunciarem. E os olhos! Meu Deus os olhos! Nunca houve poeta que cantasse olhos escuros,

(Não castanhos escuros, pretos como carvão. Um antracite tão escuro e tão profundo que nos podíamos afogar lá dentro, mas que de certos ângulos ganhavam um brilho luminoso.)

e isso é porque nunca conheceram estes! Eu vejo-lhe a boca a mexer, oiço ruídos mas estou completamente absorvido pelos olhos. Nem o generoso decote

(que deixa antever umas gémeas 36. Não é imenso eu sei, mas prefiro elegância na escultura, a excessivo volume.)

me faz desviar o olhar. “O meu nome é Rapariga e o teu?” e respondo-lhe com o meu nome e cruzando a óbvia entoação das letras e a pronúncia com que os dizemos, concluímos ser conterrâneos.

segunda-feira, novembro 28, 2011

A Cidade

Não vai ser preciso calcorrear prolongadamente os passeios

(Tão diferentes dos meus, tão cinzentos, sujos, com tantos restos das noites que por eles passaram que se poderia escrever um romance por metro quadrado. Toda uma colecção onde não seria preciso repetir fórmulas nem personagens, apesar de estes poderem fazer visitas esporádicas noutros contos.)

tão desacertados que se diria que pulsam, agora subindo, agora descendo, consoante a inclinação do bloco de cimento, para encontrar o que procuro.

Tudo organizado, ali estão elas, ao longo das perpendiculares em grupos de três ou quatro, mas pouco mais. Um olhar em redor e reparo que alguns carros têm o condutor, ou, distanciados, homens a fumarem languidamente como se não fosse nada com eles.

(É assim que se arrumam em qualquer cidade: junto ao coração da mesma, onde o sangue novo chega quentinho, pronto a ser chupado.)

Deixei para trás o quarteirão dos hotéis, pensando que aqueles halls iluminados, de mármores reluzentes não são para mim, são para os que procuram em cada cidade o lado luminoso e vistoso, o vestido de gala com que ela se adorna para seduzir o visitante.

“Need some company for the night?”

(Oh baby if you only knew!)

Eis-me chegado ao que procurava. Olho-a. Não é o melhor exemplar que podia encontrar. Tem o ar de uma veterana da zona,

(Ou pelo menos a indumentária e a postura.)

o que me leva a concluir que a busca terminou, porque é mesmo isto que preciso. Não me preocupo com o aspecto físico. Podia arranjar melhor, mas também já havia tido pior, por um preço bem mais caro.

(Quando paramos para pensar, todos os engates são no fundo uma ida às putas. Tudo se resume a formas de pagamento: para umas é dinheiro vivo, para outras géneros.)

Respondo-lhe que cheguei agora, ela pensa ser uma desculpa para a evitar e começa a urdir os feitiços com que os incautos se deixam apanhar. Não sou incauto, mas deixo-me ir na mesma. Eu quero ir, ser levado, caçado e abusado!

(Pela conversa percebo que é de facto uma veterana. Nenhuma novata me diria as coisas como ela, nenhuma recém-chegada deixaria um veterano de ruas e vielas ansioso da maneira que fiquei.)

Ela perguntou em que hotel estava e eu respondi-lhe que ainda nenhum. Ela apontou então para uma janela com um letreiro intermitente ao fundo da rua. O meu palácio aguardava-me!

Não adianta estar a relatar os pormenores da noite. O sol vai alto

(Ou deveria ir, pelas horas, porque nesta cidade o sol dura uns dias no Verão. Não é Verão. O céu é cinzento, sempre cinza, ora escuro, ora claro, mas sempre um deprimente tom cinza.)

e estou numa esplanada embrulhado numa manta. Vejo o tráfego das bicicletas, que partilham o asfalto com carros e autocarros, e as ruas do centro com os peões. Vejo gente. Não vejo tipos de pessoas, vejo gente. Vejo engravatados, vejo atletas, vejo raparigas e rapazes, no fundo todo um povo. Levo o sumo de laranja aos lábios

(Está tão aguado que poderia confundi-lo com uma qualquer espelunca de turistas na minha cidade.)

para molhar a garganta. Tiro o panfleto do turismo do bolso de dentro do casaco e começo a ver o que a cidade tem para me oferecer. A verdade é que não queria ser turista, mas aqui é o que sou.

(Será alguém outra coisa quando chega a um sítio novo?)

Primeiro tenho de conhecer ruas. Até agora o que vi foi prédios de três ou quatro andares, todos num tijolo vermelho, com escadinhas à porta. Tudo construções, no mínimo, centenárias. Ou, pelo menos, de fachadas centenárias e reconstruídas no interior. Ruas largas, onde caberiam dois carros, fechadas ao trânsito para liberdade dos peões e bicicletas. E gente alta de cabelo claro, corpos magros. Para mim é fácil sobressair nesta multidão.

Um raio de sol fura as nuvens e toca-me na cara. Surpreendentemente esse toque aquece-me. Por entre um golo e outro tenho estado a tentar decifrar o que estou aqui a fazer. É verdade que ainda não passaram três dias desde que vendi a casa. Nessa noite fui ao site da companhia aérea e escolhi a promoção para Cidade, bilhete ida e volta, preço reduzido. Amanhã por esta hora estarei a perder o vôo de regresso e ainda não sei porquê. Na pensão já acertei uma renda. Consegui um negócio porreiro e consigo duplicar a estadia. Dois meses. É esse o tempo que tenho. Posso bem aproveitar o dia nesta esplanada, a ler um livro.

terça-feira, novembro 22, 2011

A Cidade

 Que saída triunfante para um átrio cheio de desconhecidos que esboçam ares de felicidade quando me vêem. Ares que desaparecem assim que me não reconhecem e os seus olhares se focam na cara que vem atrás de mim.

 Comboios para baixo, metro para cima e autocarros nas portas laterais do mesmo nível. Não sei para onde ir. Penso que com o dinheiro na conta posso dormir num hotel limpinho uma semana, ou numa pensão manhosa durante um mês. Nas informações para turistas devem ter recomendações. Enquanto caminho interrogo-me se terei o ar aparvalhado e perdido do turista típico; olhos esbugalhados 

(Como se por estarem mais abertos conseguissem captar mais informação.)

e passinhos curtinhos.

(Com medo de pisar uma mina certamente.)

 “Em que posso ajudar?” perguntam-me num inglês limpíssimo e sem sotaque.

(Há dois mil anos seria um latim do mais alto calibre, há quinhentos castelhano, há cinquenta se calhar esperavam que eu perguntasse em francês… Vou responder em francês!)

 “Un bonne hotel, s’il vou plait.” Digo com a absoluta convicção de que alguma coisa está errada na frase. “Bien sure” e tira um mapa onde escrevinha umas coisas. Começa a falar num francês com sotaque, mas não é por isso que a conversa me passa ao lado, o francês é que é demasiado avançado para mim e perco-me a acenar que sim e a murmurar aceitação.

 (Daqui a cinquenta anos que outra língua falarão? E daqui a quinhentos? Português? Chinês? Esperanto? Seremos parte dessa aldeia-global onde todas as ruas falam a mesma língua, ou continuaremos na herdade rural onde o estábulo muge, o senhor fala com o fazendeiro num dialecto erudito que é posteriormente transmitido brejeiramente à esposa que ouve o cacarejar das galinhas, enquanto pensa “o meu homem não se devia meter no que não percebe” e, lá longe, um pato grasna, os burros zurram e o vento assobia por entre as copas das árvores, enquanto na seara um lamento…)

 Olho as cruzes no mapa, agradeço, e vou para o comboio.

 Uma certeza do comboio é a estação central. Toda a cidade tem a sua Cidade-Central, onde o comboio se cruza com o autocarro, os táxis, o posto de correios, o turista que chega e o turista que está de partida,

 (Como metáfora da ignorância do que será e da memória do que foi.)

e parece, com esse burburinho, que é em redor deste edifício, centenário, mas com laivos de contemporâneo introduzidos aquando das últimas obras de requalificação, que a cidade se ergueu, como que a facilitar as partidas e as chegadas.

 (Teremos então daqui a uns centénios por coração das cidades o aeroporto Cidade-Aeroporto? Ou será que os aeroportos assumirão como sua a designação de Cidade-Central?)

 A viagem para Cidade-Central decorre pelo meio de túneis, verde e braços de água, túneis, fábricas e algumas estações e apeadeiros, fábricas e estações fora de serviço, vidros partidos e Cidade-Central. Eis-me chegado ao coração da fera, onde o sangue circula depressa e se distribui pelas várias artérias e capilares, onde desembocam veias de diesel e táxis, o sangue novo chega para lhes dar vida, o velho parte com a melancolia

 (Será isso? Não haverá algo de cansaço e desilusão? Quantos dos que vão irão também amanhã, porque entretanto regressaram? Estarei entre quais deles?)

de tempos passados em tecidos de profundidade variável, quantos deixaram carteira e valores, importante o primeiro, acessório o segundo.

 Com este pensamento lembrei-me da questão da estadia. Afinal que melhor forma de mergulhar na profundidade dos tecidos da cidade do que misturar-me com o produto que todo o seu metabolismo, e que melhor sítio para encontrar esses metabolitos do que numa pensão rasca? Dobro o guia turístico; aquilo que procuro não vem lá, nunca vem, não importa a cidade, não importa o país, o produto final daquilo que somos não está no guia turístico, preciso de alguém que me saiba orientar para as minhas reais necessidades. Com a mala preta na mão desço as escadas no lado poente e dirijo-me à zona ocidental à procura de uma prostituta!

segunda-feira, novembro 14, 2011

A Cidade

 O avião aterrou já há uma hora

 (Céus como o tempo voa!)

mas da nova cidade ainda não vi mais do que pequenas casas em miniatura quando o avião curvou acentuadamente, tudo lá ao longe, enquadrado por campos de verde e encimado por nuvens em diversos tons de cinza,

 (Será que o sol já brilha?)

como que a pressionar-me para fugir…

 Uma hora à espera da mala, uma pequena mala preta que por não caber num gradeamento me obrigaram a despachar no porão. Pequena mala que só traz umas quantas mudas de roupa,

 (O suficiente para uma semana ou duas.)

as necessárias para me encontrar. É isso! Encontrar-me.

 Procuro-me nesta cidade, como me procuraria noutra qualquer que não fosse minha. Na minha conheço-lhe as curvas, as colinas, as gentes e os carros.

 “Bom dia vizinho! Tudo bem?”

 Tudo dito à pressa e sem esperar resposta.

 (Não é retórica porque a resposta não é imediata. As coisas até podem estar mal, eu é que não quero saber.)

 “Vai-se indo…”

 (Que tanto quer dizer que está tudo bem, como podia estar melhor, ou simplesmente que não se está morto.)

 Um “O cabrão do Clio está a ocupar dois lugares” de raiva dirigida ao carro que não tem vontade própria.

 Nesta cidade não há o monótono afogamento da rotina nem sou consumido pelo tédio.

 “Estás morto! Ou se não morreste, parece; não reages, não sais de casa, não…” Não interessa pois não? A verdade é que eu não saio

 (ou deveria dizer saía?)

mas tu saíste e contigo tudo o que me prendia à casa. Que vendi quando saíste! Vendi e comprei a passagem, um bilhete de ida-e-volta que espero sem regresso breve, porque espero há uma hora pela mala preta, mas à minha volta respira-se outro ar. Olho e vejo aceitação, despreocupação. Olho e vejo que só eu estou impaciente e enervado com a situação. Na minha cidade, apesar de esperas constantes, medidas em blocos de sessenta minutos

 (Porque razão terei pensado em minutos? Sessenta são uma hora. Será que é a necessidade de fazer parecer mais? Porque não em segundos então? Três mil e seiscentos. Sessenta minutos vezes sessenta segundos e o tempo seria já o de uma espera eterna.)

intermináveis na sua morosidade, não se desenvolveu a refinada calma e tranquilidade na espera. Aqui, pelo que experimentei até agora, também se espera horas, mas espera-se com um ar de aceitação triunfante e não derrotado desespero. Aqui quando se espera o tempo não é perdido mas ganho. Quando eles esperam põe a cara de quem vê os ponteiros a retroceder três mil e seiscentas vezes…

 (E eis que a passadeira se começa a mexer e vejo que a minha mala é a segunda a sair das entranhas do aeroporto.)

(continua)

Texto publicado originalmente na Antologia BBdE

domingo, outubro 16, 2011

Gente

Leio notícias de gente
Que ousa pensar diferente
E vêm-me à memória as aulas de história
Onde gente que pensa diferente
É perseguida
Torturada
Morta
Porque não ficam em casa como toda a gente

Leio o que pensa quem grita de dor
Gente que não sabe do que fala
Eu sei eu sofri
Aqueles apenas sabem estar ali
E penso para mim
Que pretende esta gente

Elogiam o chicote
Que lhes estala no lombo
Exigem que todos sintam
O desconforto que os faz chorar
E enquanto choram lamentam
Não há gente que o mal de mim afugente

terça-feira, outubro 11, 2011

O Atentado

Ribomba um trovão junto à estação
Assenta no chvo agora o pó da explosão
Pararam de rodar máquinas
Carruagens
Vagões
Reune-se agora a curiosa multidão
Ansiosa de sangue
Sedenta de ver
Os mártires da causa que não conhecem
Não sabem o manifesto ainda agora a ser escrito
Ao redor de uma mesa coberta de carne
De sumo
De pão
Ao redor de uma mesa se fez uma revolução

sexta-feira, junho 10, 2011

O Cadáver Branco da Inocência

 Abraçava-o com força e apenas a certeza de que não sentiria nada lhe dava algum conforto. Lá em baixo o gélido rio batia contra os pilares da ponte. Tudo tinha de ser rápido, se vacilasse tiravam-lho, internavam-na e ele...

 Tinha sido uma alegria a notícia, mas o nascimento dera origem ao desapontamento. Não havia reacções, só respondia ao toque. Não adiantava falar, mas ela precisava de lhe dizer quanto gostava dele; não olhava para ela, só para o infinito, mas ela não conseguia tirar os olhos dele. Não adiantava falar com ele, mas ficava acordada para ouvir um gemido, um grito, um som. Aos poucos a vida deixou de ser a dela. Tinha de ser os olhos que não viam, os ouvidos que não ouviam e a voz que não ia desenvolver. Desde cedo que se inteirou disso. Dizia a si mesma que o filho nunca veria a maldade no mundo, nunca saberia como o olhavam, nunca se sentiria sozinho, porque nunca teria ninguém mais que ela, um toque, uma sombra, uma aura e aí percebia que ao primeiro toque, à segunda sombra, ele não as saberia distinguir.

 O pai não viu as coisas assim. Durou algum tempo antes de chegar a casa e achar que seria melhor esquecer a criança. Ela não queria ouvir nada disso! Era um pedaço dela, foram meses a sentir o coração, os braços, as pernas, a comer por ele, a excretar por ele, e seguiam-se mais uns anos largos a ajudá-lo.

 O pai hoje chegou bêbado a casa. Não tão bêbado como costumava desde que foi despedido. Por aparecer bêbado no escritório. Não tão bêbado que não soubesse porque bebia e, estando ela a descansar, decidiu recuperar a vida, o emprego e a sobriedade.

 Quando ela acordou, não havia mais reacção ao toque, os olhos não viam mais o infinito, mas continuavam azuis celestes e não havia nenhum som, só uma almofada e um bêbado deitado no chão. Não conseguiu chorar, não conseguiu reagir. Não logo! Aguardou uns intantes e olhou para dentro de si. Estava vazia. Não fazia sentido seguir. Pegou no filho, arranjou-o como se fosse um desses passeios que davam em tardes soalheiras.

 Via uma sirene na faixa de sentido contrário. Não mandariam uma ambulância. Agarrou o filho com mais força e atirou-se.


segunda-feira, maio 23, 2011

O Cruzeiro (parte 3)

 O mar bate ritmicamente no cais e sinto-me uma criança a ser embalada. Olho em redor o porto e vejo os turistas descontraídos, a aproveitar os últimos raios de sol de um dia prolongado. Para muitos não o será certamente, mas o longo Inverno é mais fácil de encarar se esquecer dias mais soalheiros. É fácil passar despercebido na nossa própria terra, mas o mesmo não acontece quando se é alto e moreno e se marca um encontro num porto turístico da Noruega. Estranho, mas é verdade, que alguém tão alto e moreno se destaque neste mar de gente.

 "Odin não está satisfeito." diz-me ele enquanto se senta. Já sentado levanta o meu copo e aponta para ele, olhando a empregada. "Nada satisfeito." acrescenta.
 "Odin nunca está satisfeito, mas era bom que percebesse que por vezes as coisas não são como planeamos." digo calmamente. Penso em beber um gole de cerveja, mas ele olha-me intensamente e percebo que aquela é uma competição que não posso perder. "Surgiram contratempos, memórias do passado. Berlim." A última palavra, dita assim, seca, sem oração, uma palavra só, daquelas que comportam, em si, todo um conto, faz com que se lhe arregalem os olhos.
 "Ainda Berlim?"
 "Ainda Berlim."
 Uma pausa prolongada. Aproveitamos ambos para aproveitar o ar fresco que vem do fiorde e perdemo-nos por instantes a olhar o reboliço do porto de turistas.




 O camarote de Malvindo estava abafado e decidimos procurar o náufrago para lhe fazer umas perguntas. Marlene é uma inconveniência e tenho de lidar com ela no Funchal. A maneira airosa seria sair com as malas e não voltar, mas o mais certo é que ela estranhasse e ainda punha a ilha em alvoroço, o que significa mais atenção. Definitivamente, uma inconveniência e daquelas que têm de ser geridas com luvas.

 O náufrago também é uma inconveniência. A julgar pelo que disse o Malvindo é preciso muito cuidado. O facto de a maior parte dos passageiros se preparar para um original cricket ao luar tem de estar relacionado com o desaparecimento da figura, porque não pode ser coincidência o barco ter uma avaria e aquele fulano estar a bordo. Quer dizer... O desaparecimento pode não ser mais que um simples não-aparecimento!
 "Assim não vamos a lado nenhum!" resmunga Malvindo pouco depois de começarmos e estranhamente concordo com ele.
 "Tens razão. Volta para a tua cabine e prepara uma mala. O que quer que seja comprometedor e duas mudas de roupa. Eu vou fazer o mesmo e tratar de arranjar maneira de sairmos daqui. Vem ter à minha cabine daqui a..." uma pausa para olhar para o relógio e calcular quanto tempo para ir fazer a mesma coisa, encontrar um bote resguardado e voltar à cabine "quarenta minutos." Pelo ar, desconfia de mim. Claro! Um homem não sobrevive neste ramo a confiar em cada bom samaritano que nos salta ao caminho. "Trabalhei durante uns tempos em navios de cruzeiro e se há coisa que sei é que não se tiram os passageiros da cama à meia-noite por causa de avarias, a menos que o barco esteja a ir ao fundo." ainda nada " Pára e pensa um bocado: barco parado, passageiros todos concentrados... Não parece um bom argumento para uma caça ao homem? Se for, eu quero estar do lado dos caçadores, não dos caçados." Ainda hesitou uns segundos antes de, sem qualquer sinal, começar a andar em direcção ao seu quarto.



 Estava já a voltar à minha cabina quando um vulto dobra a esquina do meu corredor. Pensei, pela figura, que pudesse ser Marlene e decidi segui-la. Face ao aconchego das armas com o silenciador à cintura, não consegui melhor do que ver a figura a dobrar um outro corredor. Num passo apressado, decidi chamá-la enquanto dobro a segunda esquina. A figura parou, virou-se e vi que afinal havia perseguido a figura de Fernanda, a animadora de bordo e que deveria estar a orientar os passageiros no seu original cricket nocturno.

 "Os passageiros..." cortei-lhe a palavra ainda antes que ela pudesse chegar ao verbo.

 "Você sabe tão bem como eu, ou melhor, que não há avaria nenhuma! Quer-me contar o que se passa ou procuro o capitão?" a julgar pela expressão facial, só a menção ao capitão virou a conversa para o meu lado.
 "O capitão não está disponível de momento." disse com voz tremida.
 "O imediato então..." acrescentei, tentando perceber algo da disponibilidade e virando costas como quem vai embora. Felizmente não precisei de me ir mesmo embora, embora se o fizesse talvez me tivesse limitado a dobrar a esquina.
 "Espere!" disse enquanto me agarrava um braço. "O capitão está trancado no seu quarto e não responde. O capitão Picardo não costuma fazer isto, costuma passar as primeiras noites na ponte e é homem de sono ligeiro. Algo se passa! Pode-me ajudar?"
 Acedi mais para poder chegar ao capitão do que pela voz entaramelada. Chegado à cabine do capitão ela bateu duas vezes à porta sem resposta. Na ausência de resposta, e deduzindo que não seriam as primeiras tentativas, dei violentamente com uma das solas na fechadura. A porta mal estremeceu, ao contrário da minha perna! "Blindada?" perguntei a Fernanda. "Não. Em caso de necessidade o capitão fica com a tripulação na ponte." Pois, em caso de necessidade todos saem dos quartos a correr e portanto as portas abrem para fora. Como pude ser tão parvo? Olho em redor e vejo que o extintor mais próximo se encontra a cerca de 50 metros, o que é estranho quando os procedimentos de segurança mencionam 30. "Pode-me ir buscar aquele extintor?" Ela vira costas e eu rapidamente tiro uma das armas, dou três disparos certeiros onde penso estarem as dobradiças e volto a guardar a arma. Ao fundo do corredor ela acaba de remover o extintor da parede e parece-me que não se apercebeu.
 Uma vez dentro da cabine do capitão, Fernanda correu para o quarto enquanto eu me preocupava mais com um fax com o timbre da Interpol.

 "Não!" gritou ela no quarto e pensei eu ao ver o fax com o currículo do náufrago. Desliguei-me daquele momento e transportei-me para uma casa a arder em Berlim, dois prisioneiros na cave e uma pequena fortuna em armas, prestes a irem pelos ares e a chamar muita atenção para uma operação discreta...
 Cambaleei para o quarto. A tenente era agora uma carpideira cobre o corpo pálido do capitão.

 "O náfrago?" perguntei, sem convicção e acabei por ficar sem resposta, ocupada que estava. Voltei a perguntar. Voltou a não responder. Levantou o olhar. Vermelhos de dor e encarnados de raiva, assim estavam os seus olhos, como se vermelho e encarnado fossem duas cores diferentes, a mesma manifestação de dois sentimentos distintos.

 "O capitão não vai acordar, está demasiado pálido." disse-lhe com aquilo que mais tarde percebi ser uma frieza que só se adquire passando muito tempo com cadáveres. Demasiado tempo, na opinião de alguns. "Nós estamos vivos, mas a julgar por isto" passo-lhe o currículo para a mão "não sei por quanto tempo. Volto a perguntar: onde está o náufrago?" Enquanto ela lia o fax eu perguntava-me como podia ter sido tão parvo. Malvindo tinha-o reconhecido mesmo sem a barba e com o bronze e a fuligem. E estaria o cabelo pintado?
 "Isto é terrível! O Paul desconfiava de algo, mas isto vai para lá do imaginável." e continuou a contar-me o que Paul imaginara. O que Paul, ela e mais um grupinho engraçado imaginaram!
 "Fernanda, " interrompi " ainda não me disse onde posso encontrar o náufrago!"
 "Mas você quer enfrentar um louco? Tem de ser..." a frase ficou em suspenso porque entretanto eu tirara as armas. Ainda ameaçou gritar mas o som não saiu.
 "Isso! Não vale a pena estarmos a chamar a atenção." respiro fundo "Não vale a pena fazer de conta que sou dos tipos bons, mas se quiser ver o mundo a preto e branco, basta-lhe saber que estou consigo, enquanto estiver comigo. Há no mundo pessoas como eu, más por necessidade, e outras más por natureza. O nosso amigo Salvador está na segunda categoria. Eu estava de férias, mas acontece que o nosso amigo tem muita gente má à procura dele. É o chamado mau entre os maus." o olhar dela não era agora tão esbugalhado, mas ainda parecia bloqueado no cano da arma. Ainda! Inconscientemente apontara-lhe uma das armas...




 A explicação ainda demorou um pouco mais, mas finalmente acedeu a ajudar-me. Quando cheguei à minha cabina já o Malvindo lá estava, com ar de libelinha perdida. Quando nos viu esbracejou. Quando os apresentei bufou. Quando contei o que aconteceu passou-se, mas o pior tinha sido mesmo o apresentá-los, o ela saber.

 "E o que se faz com ela depois?" chegou mesmo a perguntar, enquanto eu tomava a dianteira para o bote onde guardara a minha espingarda e a roupa.

 "O que se faz é deixá-la para poder voltar à vidinha dela. Estou de férias e não tenho ninguém marcado."

 "Mas e o que ela sabe? Quem sabe tanto não pode andar por aí à solta!"
 "Isso não é da minha responsabilidade. Vai connosco na balsa e depois logo se vê, mas se não houver espaço para ela, você fica já aqui!" Se não fosse o que ele disse a seguir, com um sorriso de escárnio, penso que era capaz de lhe ter apontado a arma.
 "Balsa? Meu menino, tens menos de uma hora para fugires ao heli! De balsa nem chegas a ver as luzes do Funchal. Aprende com os mais velhos e ouve-me." e, esquecendo Fernanda, prosseguiu contando o plano para fugirmos daquele barco.




 Atirei a cabeça para trás e senti o sal do fiorde a bater-me no rosto.

 "No heli da polícia?" perguntava-me estupefacto "No heli sem matar ninguém?"
 "Sim. Eu próprio quando ouvi o plano não queria acreditar, mas funcionou lindamente."
 "Onde o deixaram?"
 "Na Madeira. Aterrámos lá num pico, pegámos fogo àquilo e descemos à boleia para o Funchal. Já estava tudo apalavrado com o contacto e foi só tratar das formalidades."
 "E a gaja?"
 "Ela e o Malvindo pintaram um quadro de rapto e voltaram para o barco. Da última vez que ouvi falar nela tinha-se despedido da companhia de navegação. Não sei se há relação, mas conta-se que para se chegar à Fada Madrinha agora tem de se falar com um tal de Duende de Saias, mas não confirmo." gargalhada!
 "Espera, aí! O Duende trabalhava num paquete?" encolho os ombros e ponho um ar de falsa inocência. "E estão-se a dar bem?"
 "Não mantive contacto. Das duas vezes que me cruzei com aquele fulano as coisas tomaram um rumo que só vejo em filmes, e dos maus!"
 "E Berlim? Fechaste Berlim?"
 "Berlim está fechado. Com um bocado de sorte fica com as culpas do rapto, do heli, do massacre a bordo. Acho que planeado não ficava mais limpinho."
 "Mexe com muita gente..."
 "Mais do que recomendável para ser bem feito."
 "Mas... Assim do nada?"
 "Se fosse um poeta ou um skald dizia-te, por palavras cantadas, que apareceu à minha frente e que reagi tão depressa que foi só atirar. Não foi tão poético, mas podemos passar essa história."

quinta-feira, março 10, 2011

Crise de meia idade

Todas as vezes que olho para o espelho
as linhas da minha face afundam-se
marcando a passagem da minha vida,
Do amanhecer ao anoitecer
De Janeiro a Dezembro
Do principio ao fim.

Passei a minha vida a aprender
de livros escritos por sábios ou loucos,
e quando quero mostrar que sei ensinar,
enredo-me na maldição geral
que é necessário perder para poder vencer.

Quero esquecer,
por um dia
por um ano.
Quero viver,
por mais um dia
por mais um ano.

Quero ser o louco que ensina,
a besta que destrói o mundo
ou o herói que salva a donzela.
Quero ser o sorriso nos lábios,
as lágrimas dos outros
ou o simples sonho de ser.

Quero esquecer,
por uma hora
por uma semana.
Quero viver,
por mais uma hora
por mais uma semana.

Quero quebrar as correntes do mundo,
deixar que as rugas escorram com a água,
partir o espelho que me mostra
que existo.

Quero ser...
Mas tenho que me despachar esta manhã para ser mais uma formiga no carreiro.

quinta-feira, janeiro 27, 2011

O Cruzeiro (pt. 2)

“Que significam?” perguntou-me Marlene quando me sentei na berma da cama. O sol de final de tarde, em tons de laranja carregado, apelando à torpeza dos sentidos, ilumina a cabine da ruiva. Em simultâneo com a pergunta sinto uma mão a passar-me nos ombros. Que significam dois corvos tatuados num norueguês? Pergunto-me, completando a pergunta dela. “São os corvos de Lisboa! Passo cá muitas férias e decidi levar uma recordação da cidade.” Minto-lhe, com um sorriso que grita falsidade.
“Parvo… Que significam? Ou simplesmente gostas de corvos?” insiste. Hesita. “Bom, em várias culturas os corvos são vistos como uma ligação ao mundo dos mortos. Na mitologia nórdica, existem dois corvos em particular, Huginn e Muninn, que são uma forma de comunicar directamente com Odin, o líder dos deuses.”
“E tu precisas de comunicar com Odin?” pergunta, não sem evitar uma certa entoação de escárnio. Ontem mal conseguia articular duas palavras sem ficar mais vermelha que o sol que ilumina a cabina. Hoje dá-se ao luxo de gozar com o que não conhece. Pior! Eu deixo e rio-me com ela e gozo com coisas demasiado sérias e para as quais não a quero arrastar. Raios! Este tipo de preocupações são perigosas e já nem me refiro ao meu dia-a-dia, refiro-me a este cruzeiro em particular.
Ponho um ar o mais sério possível, levanto-me e enquanto visto os calções e a t-shirt digo-lhe que “Devia ir para o meu quarto arranjar-me. Se calhar é melhor jantares sem mim.” e saio do quarto. Não lhe dei tempo de me seguir, mas não estranho quando menos de um minuto depois ela me bate à porta do quarto. “Que foi aquilo?” pergunta entre o choque e a raiva. “Para saberes vais ter de pensar muito bem no que foi o nosso fim de tarde. Amanhã vou almoçar com um amigo no Funchal. Se o nosso fim de tarde foi só isso, um fim de tarde, não esperes por mim ao meio-dia no cais. Hoje tenho assuntos pessoais para tratar e se calhar não devia ter sido tão brusco contigo, mas amanhã falamos melhor. Pode ser?” Vejo ainda alguma indecisão e espero que tenha parecido estúpido o suficiente para ela não esperar por mim. Despeço-me e encosto a porta. 
Debaixo da cama duas malas iguais. Numa delas uma etiqueta diz Gungnir, a lendária lança de Odin. Na outra, Huginn e Muninn, os corvos de Odin, que em algumas culturas representam uma ligação ao mundo dos mortos. Lembro-me da conversa de ontem com o Malvindo e abraço-as…

Um náufrago não é um acontecimento habitual, mesmo para quem passa a vida no mar, mas um náufrago que, sem articular palavra, cura a bebedeira de Ernesto Malvindo, a “Fada-Madrinha”, é um náufrago que até a mim me interessa. E deixa nervoso! Procuro segui-lo, mas a comoção chamou gente de todo o barco e Marlene interpela-me. Não consigo dizer que não àqueles caracóis ruivos e ficamos para mais uma bebida, ou duas, ou três... Finalmente acompanho-a à porta do quarto. Carrego-a até à porta, pelo braço, seria um termo mais correcto. Pelo caminho peço a uma das tripulantes que me acompanhe “para a deitar”. Após alguma relutância fingida lá nos acompanha.
Perto do convés da tripulação cruzamo-nos com a flor-de-estufa. Parece que já entregou o seu peixinho a quem de direito e anda agora à pesca doutro atum. O olhar desiludido com que me olha diz-me que podia muito bem ter sido eu. Deixo a Marlene no quarto com a Joana, uma simpática tripulante que tem a nobre tarefa de fazer as camas. Quando ela sai do quarto pergunto-lhe se há camas muito desfeitas e ela responde-me que a dela “está sempre pronta para ser desfeita” porque “sempre serve de treino fazê-la”. O sorriso perverso que me deita fala por ela e convido-a para irmos até à amurada apanhar ar. Ela esquiva-se com um “é demasiado fresco. Sei de um sítio onde podemos apanhar ar mais quente.” Sigo a deixa e vou atrás dela.
O quarto dela fica na outra ponta do barco. No regresso ao meu barco aproveito mesmo o ar fresco da amurada. No salão o piano electrónico foi esquecido e continua a tocar. Dirijo-me lá dentro e vejo que na mesa de honra alguém se esqueceu de uma caixa de charutos. Cohiba. Reformulo, alguém com bom gosto esqueceu-se de um caixa de charutos. Tiro quatro, os que cabem no bolso da camisa e os fósforos que ali estão ao lado e continuo para o meu quarto. Na amurada, ainda junto ao bar uma voz rouca e familiar. “Fodidos, estamos todos fodidos”. O barman… Ou melhor outro barman “Tem de se ir embora. Qual o seu quarto?”
“Você não percebe? Estamos todos fodidos!” afinal parece que a bebedeira não está totalmente curada. Dirijo-me ao bar e digo ao barman que o levo para o quarto. Encosto-o à amurada e estendo-lhe um charuto.
“Cohiba! Sabes o que é bom miúdo!” Diz-me com o ar embevecido dos bêbados. Olha para mim um bocado à luz do terceiro fósforo. “Eu não te conheço de algum lado?” Respondo-lhe com o nome da cidade. “Berlim” Ele fica um bocado ocupado com o seu charuto até que me pergunta “Asgard?". Respondo afirmativamente. “Um caso complicado. Muito sujo. Mal feito. Não que a culpa fosse vossa, simplesmente não deu para melhor. Fiquei um ano fora da Alemanha e sabe Deus a quantidade de barrisque lá se beberam nesse ano…” Agora era um bêbado a recordar o passado, algo que eu queria evitar. Acima de nós havia pelo menos mais dois conveses, antes de se chegar à ponte. A última coisa que eu queria era alguém a ouvir conversas camufladas.
“Grande noite, esta!” soltei.
“Só te digo uma coisa: estamos todos fo-di-dos!” 
“Então porquê?”

Quando chego ao meu quarto, depois de deixar o Malvindo no quarto dele, tiro duas malas debaixo da cama. Verifico que o conteúdo está completo e amaldiçoo a hora em que não trouxe uma ligação satélite segura.