quarta-feira, fevereiro 01, 2012

A Cidade

 O sol bate-me nos olhos. Penso que casas com janelas viradas a nascente deviam ser proibidas. Olho pela janela e o brilho parece-me demasiado para um sol que nasce. Levanto-me e chego-me à janela, sem me importar com a nudez, apesar do parapeito baixo da janela.

 Olho para o prédio em frente e para os que o ladeiam. As janelas são todas elas enormes,

 (Não custa muito pensar o porquê: é o sol! As janelas são enormes para o sol poder entrar mesmo quando está oculto.)

mas no prédio em frente ninguém nu me contempla. Olho para o céu e vejo o Sol bem no seu pico. Não é uma casa com janelas a nascente, é uma casa com janelas a sul, aquela em que acordei. Olho em meu redor. Estou numa espécie de escritório. Ou numa de espécie de quarto. Será certamente um quartório, divisão híbrida que é habitada por espécies sem dinheiro para uma casa e que duma divisão fazem toda uma casa. Olho para a cama onde dormi, um colchão no chão com uns lençóis. Tento recordar a noite anterior mas não me lembro dos acontecimentos.

 (Ou se calhar até lembro, mas prefiro apelar ao esquecimento. Estranha essa divisão a que chamamos memória. Tem na porta uma janelinha que abre do lado de fora e donde vemos todos os seus compartimentos, com janelinhas nas portas, para escolhermos os que nos convêm.)

 Lembro-me isso sim dos prédios, a humidade palpável, as ruas imensas a passarem aos ésses por baixo dos meus pés e duas presenças. De um lado estava ela, pequenina, a rir-se copo de…

 (sei lá que merda era aquela, era uma bebida qualquer, o copo era de cerveja, mas cerveja não tem aquela cor)

 No outro.

 (Pausa. Uma memória que sai do armário.)

 Por instantes penso na amiga da Rapariga, a que mora na mesma casa, num quarto em frente, mas a presença não era ela, apesar da memória visual. Todos os restantes sentidos me transmitiam um conjunto de sentimentos diferentes. Por todo o lado, em meu redor, a presença que se sentia era como se o nevoeiro tivesse ganho vida, como se as sombras fossem gente, as gentes sombra, os candeeiros pirilampos e toda a cidade tivesse ganho vida e me abraçasse como uma mãe a um filho.

 Ah! Cidade!

 Um abraço terno, amoroso, apaixonado, como uma amante sedutora arrastando o seu amado, por ruas de algodão, colinas de molas, becos escuros de paredes rosadas.

 Ah! Cidade!

 E o sol reflectido nas janelas da frente, nas poças da rua,

 (Não me lembro de chover.)

os passeios sujos a clamarem pelos meus passos. Os parques verdejantes, a assobiarem

 (Deve ser do vento nas árvores.)

e atrás de mim uma porta que se abre, uma voz que pergunta se dormi bem. Olho para trás. A Rapariga aí está, roupas simples, discretas, e o mesmo olhar sem fundo, o mesmo sorriso eterno.

 (Como podia ter dormido mal. Dormi que nem um bebé bêbado. Provavelmente mais como um bêbado do que um bebé.)

 Diz-me que se quiser alguma coisa para a cabeça tem uma farmácia recheada. Respondo-lhe que quero algo para a barriga. Pergunta-me se dói e eu

 (não percebes nada Rapariga)

respondo-lhe que não, tenho é fome.

 (Como não me lembro de ter vomitado na noite anterior, provavelmente é do tempo que passou desde a última refeição.)

 Ela conhece um sítio que servem grandes-pequenos-almoços. Porreiro.


 O pequeno-almoço desta gente é muito parecido com o meu almoço. Diferença? Não o tomo numa livraria quando na sala ao lado decorre a apresentação de um livro. Não percebo nada do que dizem, mas parece-me que os que percebem na minha sala preferiam não perceber.

 Acabo de comer. A Rapariga saiu para fumar e fiquei sozinho. Pego num livro. Não percebo isto. Dicionário Cidadês-Inglês, duas prateleira mais acima. “Embrenhei-me em terras longínquas, longe de rei, família e amigos” assim começa o calhamaço de poesia que tirei ao calhas da estante ao lado da mesa. Longe de rei, família e amigos… Rio-me para dentro.

 Três meses. O orçamento não dá para tudo, mas a mudança para o chão do escritório da Rapariga ajudou a esticar. O partilhar momentos com a companheira encurtou-o. Gostava de ficar mais uns meses, talvez chegar ao ano, até arrisco pensar em não partir...

 (Afinal o quarto era a porta em frente.)

 O tempo lá fora está cinzento, escuro e frio, mas por dentro não sou já o tempo. Não é Rapariga que me mudou. No tempo que aqui passei nada se passou.

 Já de Cidade não posso dizer o mesmo. Com Cidade e Companheira tudo se passou, tudo se transformou e os dias de frio e de tempo escuro e molhado foram-se entranhando nos ossos até serem tão naturais como acordar. Já não sentia frio, sentia a temperatura amena do dia-a-dia, nem tão quente que apelasse à preguiça, nem era aquele gelo que gelava o espírito mais inflamado.

 As gentes que fugiam no passeio, os motoristas, os ciclistas e outros transeuntes preocupados com a sua vida, os bares apinhados, as ruas de tijolo vermelho antigo, adornadas com heras, arbustos e flores murchas, tornaram-se irmãos, irmãs e roupas adornadas, no colo de quem encontro refúgio, com as quais me aqueço no Inverno. Não eram já desconhecidos. Eram os primos afastados que ao fim de muitos anos precisamos de reconhecer, reconquistar. E aquela ciclista que à tarde quase me atropelava, no bar à noite podia ser com quem falava!

 Fecho a mala preta. A mala preta, pequena, com umas quantas mudas de roupa, o suficiente para uma semana, ou assim. Leva as roupas e pequenas lembranças.

 Pequenas lembranças, coisas, símbolos. Nada de postais ou t-shirts ou pins ou miniaturas. Copos como milhares de outros,

 (Recheados com meias usadas para proteger do choque. Os funcionários de aeroporto acrescentam um carinho e simpatia nas malas, que a violência do descolar e aterrar parecem carícias que uma mãe extremosa.)

recolhidos em bares, no final de noites bem regadas. Dados desses bares, sujos, gastos nos cantos, de pintas grandes e pequenas, descalibrados. Bilhetes, de transportes, museus, concertos. Uns roubados, outros sobre-usados. Memórias. Essencialmente levo as memórias. O que era, quando cheguei. A memória do que é a descoberta. Levo-me a mim na mala preta que só leva roupa e memórias.

 Na mesa da cozinha um bilhete de avião. Por cima do bilhete um maço de tabaco.

 (Relembra-me que às vezes fumo.)

 “Quando voltas?”

 “Não sei”, respondo. Talvez amanhã, depois ou nunca. Emigro hoje para o meu país, porque quando o avião descolar e passar o manto cinza, estarei a deixar para trás, a minha Cidade.