quarta-feira, agosto 25, 2004

Photomaton

Encerro a graciosidade do gesto com um toque, e de repente a intemporalidade pertence-me... sou eu o dono do momento, aquele que já se encontra perdido. E os dias passam, e o tempo avança, e eu, ladrão das horas, capturo os gestos e as frases e os sorrisos que se tornam meus. E todos os que se cruzam com o meu gesto, pertencem-me, imobilizando a sua essência numa forma imperceptível ao mundo e ao tempo. E eu, possuidor das memórias, revejo as que não tive, possuindo as vidas que não vivi, saboreando esses escassos instantes capturados como se fossem meus.

segunda-feira, agosto 16, 2004

Tonan, o Barbariano - 3ª Parte

A estrada de terra batida encontrava-se menos poeirenta do que o costume. Normalmente era na época das monções (em que a vegetação da Floresta Negra se mostrava ainda mais encaracolada e propensa a piadas de mau gosto do que o costume) que as paupérrimas vias de trânsito se encontravam alagadas, transformando-se em rios de lama mais propícios à navegação do que às caravanas de carroça.
No entanto estavamos a meio da estação seca. A estrada estava ensopada, sim, mas não era de água. Não, era de...
- Sangue! aArrGhhh!!
Uma cabeça decepada voou pelo ar, indo cair junto de uma toca de répteis que, agradecidos, começaram imediatamente a descarnar a iguaria.
O grupo de soldados recuou, assustado, enquanto o corpo decapitado do seu capitão escorregava para o chão. Na lama avermelhada jaziam já metade dos seus companheiros, ou o que restava deles.
No meio dos cadáveres estava a figura que lançara o grito.
Tonan, o último dos Gu'Man, podia não saber contar os dedos da própria mão direita ou distinguir um verso arcano de uma esgichadela de babuíno com disenteria, mas lá que era um ás no que se tratava de cortar, mutilar, torturar, rasgar e trincar as carnes alheias, isso era. E com que brio Tonan abria o peito de um soldado só para lhe arrancar o coração e o meter na boca de um segundo, este empalado na lança com um terceiro! Para não falar dos que agonizavam e rodavam no espeto, sem braços nem pernas, enquanto o lume brando lhes prolongava o sofrimento...
Era com estes mimos que Tonan, esse Barbariano, presenteava os que tinham a infelicidade de o encontrar no caminho, fossem monjes estóicos, velhos mendigos, virgens imaculadas ou até bebés de colo (irra, que ainda vou preso!).
O que restava do grupo de soldados debandou em pânico, correndo em todas as direcções até chocar contra uma árvore ou cair de algum penhasco.
Tonan ignorou a fuga e começou a tentar pensar no que iria fazer a seguir.
Não conseguiu.

(fim da 3ª Parte)

Tonan, o Barbariano - 2ª Parte

Despontava um novo dia na Floresta Negra, o que era o mesmo que dizer porra nenhuma. Era um pardieiro sem o mínimo interesse, cuja vegetação encaracolada se repetia monotonamente até ao horizonte, para desespero dos amantes de discrições tolkianas de paisagens exuberantes.
Era por entre este esgoto botânico que Tonan se movimentava, ágil e rápido como uma lesma paralítica, tropeçando em cada galho e caindo em cada buraco. Ao fim da enésima esfoladela, Tonan sacudiu o pó do seu corpo tatuado - invariavelmente com figuras de mulheres nuas em poses mais que chocantes e outros arabescos de duvidosa moralidade - ao mesmo tempo que pensava na distância que o separava ainda da civilização.
Não que ansiasse por água corrente ou comida no prazo de validade, tais bens nada diziam a Tonan: eram o refúgio dos fracos.
Não, o que Tonan desejava era SANGUE! Cortar as orelhas daqueles aprumadinhos da cidade, violar-lhes as mulheres, fritar-lhes os animais de estimação em óleo de cinco dias... Isso tudo, por esta ordem ou até ao mesmo tempo, sim, isso tudo Tonan lhes faria, pois tal não era mais do que o retrato fiel da sua natureza animalesca.
A natureza de um verdadeiro Barbariano.

(fim da 2ª Parte)

segunda-feira, agosto 09, 2004

As minhas palavras

Na dor da ausência, encontro as palavras, as formas que, encerram os sentidos. E é nestas palavras, repletas, que desvendo o meu ser. Só na sua perfeição física me encontro, e me perco, na plenitude dos sons talhados, das palavras que ficaram por proferir. Por isso escrevo, e exponho as mágoas e os desejos, os que ficaram por concretizar no ontem perdido. E na frugalidade das horas, estes tomam figura, tornando real o gesto nunca traçado. E o tempo descerra-se, assim devagar, e a ilusão de realidade que me encerra, vai tornando existentes estas palavras que aguardo.