terça-feira, fevereiro 04, 2014

O Mistério da cegonha

O Marco até podia ser um jovem normal, se existissem exemplares disso: jovens normais! Por definição, os jovens são todos “não normais”, diferentes, peculiares, se quisermos! O Marco era, à sua maneira, peculiar. Vestia-se sempre de preto, as botas de biqueira de aço sempre perfeitamente engraxadas, calças de ganga preta com uma corrente a segurar as chaves, t-shirt preta, uma sweat (preta, claro está), e um casaco se estivesse frio… As meias e os boxers também eles pretos… Chapéu de chuva: nunca… Um impermeável, às vezes! Ia às aulas durante o dia, de  resto não se sabe muito bem onde andava nem o que fazia, nem quais as suas brincadeiras favoritas, e nem sequer qual o seu clube de futebol, dizem os que o conhecem pouco, porque também há os que não o conhecem quase nada… Sempre foi curto de palavras! 
Se em muitos destes jovens pode ser difícil explicar quando é que está “anormalidade” se começou a manifestar, no caso do Marco era perfeitamente evidente: era “assim” desde de que nasceu! Talvez até antes, quando ainda estava no ventre da sua mãe! A avó Jacinta veio da terrinha para ajudar a mãe do Marco com as tarefas da casa no último mês de gestação daquele que seria o seu primeiro e único filho… No ínicio de junho de 1989 profetizou a mesma avó que este rapaz havia de nascer a 19 do mesmo mês, em dia de lua-cheia, porque os rapazes nascem sempre em dia de lua cheia… Mas enganou-se! O Marco nasceu 3 dias antes, a 16 de junho, e até os deuses se enraiveceram… nessa noite choveram trovões em Lisboa com uma força tal que muito juram a pés juntos que parecia ser de dia… Alguns ainda se lembram deste dia como a pior trovoada na região de Lisboa de todo o sempre! Faltam provas que corroborem estes testemunhos. 
Na manhã seguinte a avó Jacinta foi visitar os dois à Maternidade Alfredo da Costa, e ao entrar naquele quarto era como se já soubesse o que tinha acontecido! Nunca mais disse uma palavra a sacana da velha… nem à filha nem ao neto, nem ao falecido marido quando o ia visitar ao cemitério, nem ao padre da aldeia… Nunca mais falou! Ficou muda, coscuvilhavam as vizinhas… Ou então, agora tem a mania que é senhora porque tem um neto que nasceu na Maternidade, dizia a outra! E a avó Jacinta, era como se não ouvisse, ali sentada ao lado delas sem dizer uma palavra! Nunca mais falou, nem quando foi internada de urgência abriu a boca para falar com o médico ou se queixar das dores… Foi assim, há quase 11 anos atrás!
Hoje, é terça-feira, 9 de maio de 2000. Para o Marco, e todos nós, podia ter sido um dia normal! Podia… mas só até às 22h! Nesse momento, enquanto Marco termina o último fio de esparguete toca o telefone, a mãe chama-o e diz que é para ele, uma voz abafada do outro lado da linha diz:
- Aparece no Jardim da Estrela ao pé da estátua do Antero de Quental às 22h40m, nem um minuto a mais nem um minuto a menos! Tchlim!
A mãe olhou-o como que censurando a hora de sair de casa, mas há muito tempo que já não dizia nada! O Marco pegou no casaco e saiu porta fora! No elevador, uma memória da sua infância assombrou-lhe pensamento, mas não ligou. Ao sair à rua verificou o relógio, e percebeu que podia ir a pé.

Chegou à entrada do jardim da Estrela às 22h38m, e sorriu de orgulho para si mesmo. A medida que se aproximava do recanto do poeta foi imaginando a sua silhueta como que vergada e as enormes barbas. No momento em que está a seus pés: escuridão. Sim, escuridão imediata. PAM! Em todo o lado… a cidade toda a cidade às escuras… No dia seguinte, o ministério, ou a EDP ou REN iriam culpar uma cegonha do apagão generalizado a sul do país…. Mas apenas o Marco, o Antero e o dono da voz ao telefone sabiam a verdadeira razão daquele apagão!