Estava deitado sobre as pedras da
calçada. O céu vestia-se de véus de tons de violeta e safira e as primeiras
estrelas despertavam, ainda tímidas e baças. Uma aqui… três mais adiante. “Quem
diria que ainda há pouco chovia…”, pensou para consigo e não pode deixar de se
admirar com a quantidade de ideias parvas que nos passam pela cabeça, quando nos
encontramos em situações limite. Recordou-se que já não contemplava as estrelas
há tanto tempo, que lhe parecia ter sido numa outra vida.
A sua atenção concentrou-se no
jorro que lhe percorria a face direita, desde a testa até ao pescoço. Um rio
quente e pulsante que lhe enchia as narinas de um aroma a ferro e lhe percorria
a pele como a caricia de uma amante inconstante, ora suave e doce, ora
lancinante como a onda de dor que sentia vinda da ferida que tinha na testa. “Que dia estranho…nunca imaginei que um dia em Lisboa pudesse ser assim”, pensou
para consigo. “Num só dia vivi e senti mais do que em todos os dias somados
destes últimos 5 meses que estive em viagem…aliás, penso hoje vivi mais que em
todos os outros dias…”.
À medida que a dor se foi tornando
cada vez mais intensa, começou a perder o controlo do fio dos pensamentos,
delirando livremente pelo céu estrelado, sentindo o toque de Lúcia, os seus
olhos nos seus, a promessa dos seus lábios que ficara por cumprir. Começou a
confundir dor com prazer e entrou em êxtase enquanto o céu de Lisboa girava sem
parar sobre os seus olhos. “Não há maior honra que a de morrer por amor!”,
citou Florentino Ariza como se ele próprio tivesse encarnado o personagem.
Segundos antes de perder a consciência, conseguiu ainda distinguir um vulto de
homem que se debruçava sobre ele e ouviu-o dizer: “Não vais morrer de amor,
Pedro...pelo menos hoje!”
Acordou incomodado pela luz do sol
que lhe entrava pela janela. Abriu os olhos com um esforço sobre-humano. A sua
cabeça estava vazia, à excepção da dor aguda que partia da testa e que se
espalhava por todo o seu corpo. Olhou à volta e percebeu que estava numa
enfermaria de um qualquer hospital. A sua atenção fixou-se nas paredes e no
tecto, manchados, com grandes lascas de tinta penduradas como pétalas de flores
de velório. As fileiras de candeeiros incandescentes, com aspecto decrépito e o
chão de azulejos partidos em tudo contribuíam para aquele ambiente de
desolação. Tentou levantar a cabeça para tentar perceber onde estava e reparou
que não estava sozinho. Haviam outras camas, com outros homens de feições
indistintas e de tal forma iguais ao ambiente da sala que quase se poderia
dizer que ali tinham sido colocados propositadamente, para tornar o ambiente
ainda mais fúnebre.
Pedro fez um esforço por se
levantar, mas a dor tornou-se insuportável e não conseguiu conter um grito. Uma
enfermeira que passava no corredor apressou-se a chegar à sua cama.
- Olá Dr. Pedro! Deixe-se estar
sossegado que precisa de recuperar! – Disse-lhe num tom maternal, enquanto o
empurrava de volta para a almofada.
- Onde estou? O que me aconteceu?
- Está seguro, não se preocupe.
Estamos no Hospital de S. José. Se se portar bem, estará fora daqui amanhã à
tarde, mas até lá nada de aventuras!
- Como cá cheguei? Não me consigo
lembrar como cá vim ter…
- Pois…isso, nós também
gostávamos de saber! Foi encontrado inconsciente, no chão, ao pé da porta das
urgências por volta das 21 horas de ontem. A polícia esteve cá, mas não
conseguiu averiguar grande coisa, porque assalto não foi! Não senhor, que ainda
tinha os documentos e o dinheiro todos consigo! Tentámos avisar que aqui
estava, mas não conseguimos localizar nenhum dos seus familiares. Tem alguém a
quem quer que ligue?
Não havia, de facto, ninguém da família
que quisesse contactar. Nos últimos anos, com o trabalho na consultora e a
depressão cada vez mais incapacitante de Rita, Pedro tinha descoberto a
desculpa ideal para se afastar da família. Não tinha tempo para ir a casa, o
emprego era exigente… a namorada não estava em condições de receber visitas. No
fundo, não suportava aquela dinâmica de conversas superficiais, de afectos
vazios, de conversas nunca tidas. No dia do funeral decidira pôr termo à
relação. Com um breve adeus, desligou o telemóvel, pegou na mota e fez-se à
estrada, deixando o Pedro que existira até então, debaixo de terra, junto com o corpo de
Rita. A última coisa que desejava era voltar a falar seja com quem fosse que
tivesse pertencido a essa outra vida. “Não somos passado. Aquilo que somos é o
espelho daquilo que seremos e não do que já vivemos”.
-A Lúcia! Sim…Lúcia! - Queria
falar-lhe. Queria pedir-lhe desculpa pela sua fraqueza. Queria beija-la
finalmente. Queria beijá-la para toda a eternidade!
E foi nesse instante que Pedro se
apercebeu que Lúcia tinha partido tal como tinha chegado: sem aviso, sem
contexto, sem contacto.