- Essa missão tu vais aceitá-la, sabe-lo bem! - respondeu o Mestre, olhando-o directamente nos olhos, transbordando calma - Vais aceitá-la porque se não tivesses esperança de que surgisse tal oportunidade, já te tinhas matado ou deixado morrer há muito tempo.
- Que sabes tu de mim para afirmares tal coisa? - contrapôs ele agressivamente.
- O suficiente... Sei donde vens, algo que tu não sabes, e sei qual o teu destino, algo de que foges e te recusas a ver...
- Como posso ver o que não se vê?
- Limita-te a acreditar! - exclamou o Mestre - Todo este tempo te remoeste com pensamentos de culpa e vingança, só nunca acreditaste realmente nessa vingança que te consumia por dentro. - Fez uma pausa e continuou. - Alguma vez paraste e refletiste sobre a forma como concretizarás a tua vingança?
- Sim... - E um brilho de maldade e raiva encheu-lhe os olhos - Muitas noites sohei com que lhe faria quando a reecontrasse...
- Não! Não te pergunto o que lhe farias, mas sim como te encontrarias com ela... - levantou-se num repente e apontou uma montanha no horizonte - Vim ontem daquela montanha. Por trás dela o Sol irá deitar-se hoje e por trás dela repousa o Clã dos Caminhantes. - Os olhos do Exilado brilharam de entusiasmo à menção do seu Clã. - Quando nós repousarmos debaixo do olhar atento da Deusa-Lua, na tenda dos anciãos a Vidente preparará o futuro da tribo, o futura em que a Discípula comandará a tribo! Queres realmente isso?
Ele não respondeu. Sentia arde em si um fogo invisível. Sentia as pernas a retesarem-se e os punhos a cerrarem-se, salivava sem cessar e a lembrança dos nomes das responsáveis pelo seu Exílio despertavam nele o que de pior o seu ser tinha.
- Exilado! - Gritou o Mestre, pegando no cajado que repousara até então ao seu lado. - Exilado, acorda da Fúria!
Só então se apercebeu que cerrara os punhos com tanta força que havia cravado as unhas na sua própria carne.
- Desculpa... Não me consegui controlar quando referiste...
- ... Eu sei! - interrompeu o Mestre. - Não o devia ter feito, mas não pensei que a Fúria estivesse ainda tão desperta em ti.
- A Fúria?! - perguntou o Exilado, espantado com tudo o que o Mestre dizia.
- O feitiço que a Vidente te lançou. Levou-lhe uma Viagem a urdi-lo e quando finalmente o deu por terminado, na primeira noite que passaram no Grande Vale, deixaste de responder por ti. Passaste nessa noite a agir em conformidade com os desejos dela e ela incutiu em ti o espírito do Lobo. Podes não o saber, mas tu não nasceste com o espírito do lobo...
- Com que espírito nasci então? - interrompeu ele.
- Não interessa! Nos dias de hoje respondes só pelo Lobo. Esse espírito foi-te dado para que tu a odiasses a ela e à sua astúcia de raposa...
- Como se contraria esse ódio? Voltando ao espírito antigo?
- Estou aqui para te ajudar a recuperares o espírito do Morcego, o caçador das trevas, que sem ver alcança sempre a sua presa, que fazendo barulho ninguém o ouve.
- E como é que isso me ajuda a regressar à tribo?
- Uma coisa não invalida a outra! Arrisco mesmo dizer-te que sem o teu espírito não passas de mais um dos seus instrumentos dela; com o teu espírito tornas-te um lutador e será tua a vontade de ocupares o teu lugar dentro do teu Clã!
Fez-se um silêncio pesado, apenas se ouvindo esporadiacamente o crepitar do fogo elevar-se acima da respiração pesada de ambos.
- E se eu quiser ficar com o espírito do Lobo?
- Estás sempre sujeito à Fúria. Momentos em que te tornas incontrolável, em que perdes a noção de onde estás e o que és; apenas a morte, o sangue e o saciar a fome interessam nesse instante. Será a primeira fraqueza que ela vai explorar. Sentes-te mesmo capaz de mudar a esse ponto e correr esse risco?
- Sinto! Na prática já não sou o que era antigamente. Teria de renascer para que me tornasse no que era. Mais vale trabalhar aquilo que me tornei e descobrir as minhas falhas, para que ela não se valha delas.
- Tens então de escolher quem serás daqui para a frente.
- Corrige-me as falhas e torna-me no Homem-Lobo!
FIM do capítulo III
Próximo Capítulo: A última vela (Homenagem a Blind Guardian)
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