terça-feira, abril 06, 2010

Ana Berta (conclusão)

O Bazar era pequeno para as multidões que lá se juntavam todas as noites. Conhecendo o Rui, ele sozinho de certeza que tinha convidado uma pequena multidão, a maior parte deles malta do secundário, para falarmos da nossa mais famosa colega, de tempos idos e de como as vidas tinham sido madrastas para nós e não para os outros. Como não me apetecia repetir conversas de pé, fui para lá reservar mesa uma hora antes do combinado.

Quando faltava cerca de um quarto de hora para o combinado vi aquele balancear de pernas familiar a entrar no bar. Vestida e maquilhada quase que passava despercebida, mas aquele andar, aquilo era-lhe tão enraizado e tão dela que não precisava de ver mais nada para saber quem entrava e se dirigia a mim.
-Então campeão? - disse-me aquela voz quente que não ouvia há muitos anos.
-Então? - estava ainda um pouco incrédulo que aquilo estava realmente a acontecer - Sei lá, "então"!... Há quanto tempo?
-Às vezes parece demasiado.
-Outras nem tanto. Vi hoje que fizeste carreira no mundo do espectáculo.
-É uma maneira simpática de pôr as coisas. Eu também já sei que dedicaste a, como alguém me disse uma vez, "morrer de tédio no lento suicídio do escritório". Lembra-te alguma coisa?
-Lembra-me alguém iludido com a vida. Quando não conheces o mundo, ele parece mais entusiasmante, com mais opções, menos impossíveis.
-E quando o conheces aprendes a ver outros possíveis, mas possíveis que te permitem fugir à rotina. Se olharmos bem - aqui uma pausa para pedir uma imperial - só temos de saber procurar as opções para fugir ao escritório.
-Tipo o quê? Tornar-me uma estrela porno?
-É uma opção. - sorriso maroto - Não é tão entusiasmante como parece, mas não é entediante. Claro que como qualquer profissão não é para qualquer um.
-Pois não, é preciso muito treino para...
-O Rui tinha razão! - interrompe-me com um tom algures entre o chateado e o cansado - Está uma sombra do que eras, partido, vencido, derrotado.
-Desculpa, o Rui!?
-Sim o idiota é que me arranjou a entrevista e é que me disse que estavas aqui agora.
-E tu vieste porque...
-Porque já não te vejo há imenso tempo! Não se pode ter saudades dos amigos? No meu ramo precisamos dos amigos, sabes?
-Claro que podes, mas vais-me desculpar estar esquisito, sabes nunca pensei que tu acabasses...
-...A vender o corpo?
-Sim. Provavelmente é isso. Que te correu mal na vida?
-Mal? - o ar dela enquanto gritava esta palavra era de espanto indignado - Ai tu achas que algo me corre mal na vida porque faço o que faço? Nunca pensaste no contrário, que isto é a vida a correr-me bem? Tu que passas nove horas num escritório, cinco dias por semana, quatro semanas por mês e tens menos de um mês de férias, quando te deixam gozá-las, perguntas-me o que me correu mal?
Filipe, Filipe... - e acenava com a cabeça condescendentemente - Que sabes tu de a vida correr bem? Desde que acabámos o décimo segundo que não ligas nem falas. Se não fosse pelo Rui nem sequer agora estávamos a falar.
-Desculpa mas o que é que isso tem a ver?
-Estás desculpado. Tu que ias mudar o mundo, passar a vida em férias constantes, quando é paraste de acreditar que isso era possível? Pára e pensa: és mesmo feliz? Sabes que para quem te conheceu a resposta é bastante óbvia: não!
-Porque com a tua actividade vem incluído um curso de psicologia barata que dá alegria aos outros. Bom a parte da alegria se calhar até vem...
-Porque com a minha actividade tenho uma semana de férias por mês, porque neste momento escolho os trabalhos que faço, com quem os faço, tenho direito a assistência médica paga e acima de tudo - aqui frisou que o que se seguia era a parte realmente importante - não tenho a monotonia da fábrica de carros onde penei durante dois anos, ganho num mês o que ganhava lá num ano, não tenho turnos impossíveis e tenho um horário reduzido. Ah! E quando chego ao fim do dia cansada é porque provavelmente nesse dia consegui ter um orgasmo genuíno e não porque nem para orgasmos tenho vontade.

Aqui eu já não ouvia bem o que ela ia dizendo. Pensei, por breves instantes, que poderiam ser as desculpas que ela se dava para justificar o trabalho, mas algo na forma de falar me dizia que não era esse o caso. Aquilo não eram desculpas, eram motivos, eram as razões pelas quais ela, ao fim de um dia na fábrica, farta de processar guias de transporte, folhas de pagamento e deves-e-haveres, havia decidido deixar aquela vida. Aquilo havia sido pensado, aquelas eram as razões e ela vivia tranquila com a sua consciência e encarava de frente um mundo que a segregava. Quase que fazia com que parecesse inveja!

-Então e namorados? - perguntei, apenas com a curiosidade de saber como conjugava o incompatível.
-Casada, divorciada. Presentemente sem ninguém. Estás interessado é? - não consegui resistir a sorrir.
-Não costumo cometer o mesmo erro duas vezes.
-Então e uma quecazinha? Aposto que tenho uns truques para te ensinar. - aqui engasguei-me. No meio de tudo não vi esta a chegar e só aqui percebi que a hora de encontro com o Rui já tinha passado para lá do atraso normal. Comecei a questionar-me que ao "pagas tu" não faltou acrescentar um "não e preocupes que é só copos para dois".
-O Rui sabia? - perguntei, quase que esperando um "foi ideia dele".
-Sabia. Foi complicado convencê-lo, mas lá acabou por concordar em não aparecer.
-Então ele sabe da proposta?
-Qual proposta? Achas que estava a falar a sério?
-Pensei que...
-Que eu era uma puta que dava uma borla de vez em quando? Nem uma, nem a outra! Mostro-me e deixo que me façam coisas, também faço coisas, mas isso tem um espaço definido e é só mais um trabalho.
-Ah, peço desculpa se confundi as coisas.
-Não é isso. Emocionalmente, achas que te consegues distanciar? Se sim, bora lá, até filmamos e poupas-me umas horas de trabalho. Até te mostro como se faz, quem sabe tenho um orgasmo daqueles que se ouve na rua toda e acorda os vizinhos. Mas pensa bem no dia seguinte. Achas que estás distante o suficiente para te meteres nisso? Não esperes que eu amanhã esteja toda ramelosa à tua volta.
Eu sei que achas que preciso de ser salva, mas não preciso. E mesmo se precisasse não era por ti! Agora pensa lá bem: queres alguma coisa?

--------------------//--------------------

O sol bate-me de frente na cara e acordo num quarto de hotel. Penso para mim que deviam proibir quartos virados a nascente e apercebo-me que a água corre na banheira da casa de banho.
-Bom dia dorminhoco. - diz-me uma voz familiar e aconchegante - Não faças esse ar de parvo. Consigo ver-te pelo espelho. - olho e confirmo que é possível ver o seu corpo despido enquanto o seca.
-Bom dia! - solto aquilo que penso ser palavras, mas assumo que possa ser ouvido como um balbuciar.
-Quem era a tua amiga de ontem?
-A Ana?
-É esse o nome dela? Na revista dizia outro, um inglês.
-Sim, é actriz porno. Na revista vem o nome artístico.
-Uh! O meu namorado dá-se com actrizes porno. Tenho motivos de preocupação?
-Não 'mor, preocupa-te antes com o teu marido, que as minhas amigas são só isso mesmo: amigas!

3 comentários:

alphatocopherol disse...

Um bom texto em dois capítulos! O texto assenta acima de tudo em diálogos e estes, independentemente da linguagem, são adequados ao contexto, e perfeitamente aceitáveis aqui na PENA (aquela questão que colocaste da PENAL nem se aplica, isto é texto literário de conteúdo perfeitamente "não ajavardado").

É um texto que, e não sendo dos mais requintados que já apresentaste, apresenta uma história bem elaborada e com diálogos muito bem conseguidos :)

Captain Dildough disse...

Ao contrário do Vitinho, estou desiludido - não, escandalizado! - com a falta e badalhoquice deste texto...
Temos de tratar disso.

Chas. disse...

Ana Berta dava uma boa continuação à Maria Inês... misturando o Sergay, claro!