quinta-feira, abril 01, 2010

Ana Berta

-Bom dia, senhor Saraiva. Que vai ser hoje? - a saudação parece mais ajustada a um café do que um quiosque, mas a verdade é que desde sempre ali comprava o jornal, desde o menino Filipe até, agora, o senhor Saraiva, desde sempre vendido pelo, agora idoso, senhor Bastos do quiosque.
-Bom dia senhor Bastos. Hoje é "O Apito" e o "Diário de Trivialidades".
-Acho que "O Apito" esgotou, deixe só cá ver se sobrou algum. - e dizendo isto desaparece nas profundezas do quiosque, como que engolido.

O momento em que se espera pelo jornal é um momento mágico para o vendedor. Aquele ritmo lento com que ele procura, apurado com o lento passar dos anos, faz com que quem espera pelo jornal desde cedo perceba que é melhor entreter-se. Como o que não falta são cabeçalhos e capas para ler, a verdade é que nem nos importamos de sermos presos a uma outra capa e levar sempre algo mais do que vínhamos comprar.

Naquele dia chamou-me a atenção uma revista masculina, a CCM, que trazia na capa uma modelo escultural. Ou seria uma apresentadora semi-despida? Enfim, era escultural ou aparentava... Mesmo assim, o que me chamou a atenção foi uma das fotos mais pequenas, daquelas que aparecem nos cantos e cuja legenda anunciava "Uma portuguesa com a Europa entre as pernas" e que retratava nada mais nada menos que uma das minhas amigas de longa data, mas da qual havia já alguns anos não ouvia notícias. Na altura chamava-se Ana Filipa Machado, mas agora respondia por Cuntrine Wide.

Sei que fiquei ali um bocado, mas quando dei por mim já o senhor Bastos me olhava com os jornais na mão.
-Dê-me também uma CCM, faz favor.
-Aqui tem. - expedito - Para a semana quer que lhe guarde o Jornal de Palavras?
-Sim, se puder ser.
-Então ora aqui tem. Acertamos contas no Sábado?
-Sim, como de costume.
-Então passe bem, senhor Saraiva.
-Até logo, senhor Bastos. - e segui para o escritório com os jornais e a revista debaixo do braço, mas só um dele me fazia fervilhar de curiosidade.

-//-

Trabalhar naquele dia era impossível. Simplesmente não estava a ali, estava na revista. De facto nem sei dizer exactamente porque é que estava incomodado, afinal as estrelas porno também andaram na escola e foram colegas de alguém, simplesmente a vida não lhes havia corrido como aos outros. Eu simplesmente tinha sido colega de uma delas. E namorado.

Até compreendia que houvesse quem gostasse que lhe pagassem para fazerem aquilo, mas com a pressão das câmaras e o peso de milhares... milhões (vivemos numa época de milhões) de visualizadores de conteúdos para adultos (milhões de quase-adultos convém acrescentar) ao qual ainda se pode juntar a dificuldade de manter uma relação...

Toca o telefone:
-Estou?
-Foda-se, viste a capa da CM hoje? - a voz, quase que o grito, pertence ao Rui, amigo de muito longa data.
-A capa da...
-CCM, a revista de gajos, pá! Tens de ver, nem acreditas quem vem lá.
-A Filipa do secundário?! - disse, dando uma entoação de palpite casual.
-Porra, já viste. Ganda cena meu, andaste com uma estrela porno. - E quando ele diz isto quase que lhe vejo o grande sorriso trocista que certamente está a exibir para o telemóvel.
-Não se pode dizer que tenha o exclusivo da coisa, não é?
-Deixa-te de merdas! Logo copos no Bazar, pagas tu Dick Mountenjoy - Com a referência pornográfica desligou o telefone. O resto do dia prometia...

(continua)

1 comentário:

R.B. NorTør disse...

Após longa ausência, eis-me de regresso à produção de textos. Estive hesitante entre colocar este texto aqui ou na irmã sem validade literária (PENAl.

Acho que a linguagem ainda está adequada a este site e sempre se dá espaço a desvalidadas adaptações!