quinta-feira, janeiro 20, 2011

O Cruzeiro

publicado originalmente no  7º Conto Conjunto do BBdE!





Acordo com um grito e regresso a Istambul. Não, isso já lá vai. Pego no relógio. Duas da manhã dia vinte e oito de Março. Faz agora dois meses. Istambul já ficou para trás, mais dois meses de repouso merecido e volto para Bergen e para os cruzeiros dos fiordes. Espero que o contacto esteja no Funchal para entregar as malas. Desde que os árabes se lembraram de usar aviões como armas é liminarmente impossível despachar este tipo de encomendas por via aérea. Se ao menos o contacto de Istambul se tivesse safo… e eis que me lembro porque estou neste barco. Preciso desesperadamente de desaparecer no meio da multidão, mas na multidão há sempre cadelas com o cio. Como esta que está ao meu lado. Agora dorme, é certo, mas há duas horas parecia uma leoa esfomeada. Vai ser difícil passar esta encomenda, se ao menos o cruzeiro não fosse um retiro de reformados…
“Karl, não dormes?” diz ela enquanto se vira para o outro lado. Demoro alguns segundos a perceber que é comigo que fala. Com a pressa do bilhete perdido não tive tempo de preparar a personagem. Está na altura de preparar a vinda das malas…

O sol bate-me na cara mas não está calor. Já estou em Lisboa há demasiado tempo e começo a necessitar de casacos, à semelhança dos locais. Mal posso esperar por chegar à cabine. O meu contacto de Lisboa passa por mim e faz-me sinal que as malas estão já no quarto. Óptimo. Posso ir entrando. Faço-lhe um sinal de despedida e ele vira costas e segue à sua vida. Pode ser que volte a parar por Lisboa.

Junto à piscina para o cocktail de boas vindas começo a ver as caras. Estou sentado ao balcão, na sombra, para não dar nas vistas, mas não pude evitar de reparar que alguns dos cabelos mais compridos e menos claros sempre que podiam iam olhando. Se não soubesse o que queriam ficava mais preocupado!
Este cruzeiro de facto é um manancial de personagens que só visto. Para começar aquela florzinha de camisa havaiana verde-alface, que está a comer com os olhos o barman.
(Lamento informar-te mas se sei ler bem multidões, por aí não te safas.)
Depois está ali a empinada. Aquela só ainda não lhe descobri a história, mas deve ter encontrado o pote de ouro no fim do arco-íris. Pena que não tenha alguma humildade. Olha está a falar com outra velhota. Aquilo é um miúdo? Está desgraçado! Não havia caça para ele nas docas e não parece que venha a aparecer. A menos que queira aprender umas coisas com quem já percebe da safra. Dizem que hoje em dia eles gostam das mais velhas…
(Hoje em dia! E tu como é que conheceste a vida no mar?)
Olho melhor para ele… Sim, à noite, com um copito a mais elas nem percebem bem o que têm em mãos. Talvez ainda fale com ele se o apanhar longe da avó.
Um tipo estrangeiro (três semanas em Lisboa e já penso como um deles) oferece-me uma cerveja. Declino. Ainda é cedo para mudar do Ice Tea.
Ei! Genial. A sério, adoro ver um profissional a trabalhar com categoria. Então a loira está feita com o empregado de mesa carrancudo. Tenho de me pôr a pau com estes dois. 

O jantar de gala. Logo à entrada quase sou atropelado por uma ruiva. Atrapalhadíssima agradece-me por a ter segurado, apesar de não ter sido intencional. A verdade é que muita gente se conhece por acidente e connosco não foi diferente. Acabei por arranjar, naquele tropeção, companhia para o jantar. Os sapatos não eram dela, isso não era preciso ser-se um génio para perceber, e desconfio que o vestido curtinho também não. Nenhuma mulher disposta a usar um vestido daqueles corava como ela por cair em cima de mim. A conversa acaba por ser agradável. Chamava-se Marlene e acabou agora a faculdade. Na conversa rápida do “donde venho, para onde vou” relato-lhe a minha viagem de Istambul a Barcelona. Não pergunta porquê Istambul e eu agradeço, teria sido complicado remendar esta imprudência. 
“Então e que fazes?” pergunta ela a olhar-me retraída. Rio-me para dentro. Respondo que trabalho como freelancer em comunicação.
(O que não deixa de ser verdade.)
Acabado o jantar convido-a para uma bebida no bar, mas ela queixa-se de cansaço e proponho acompanhá-la à cabine dela. À medida que vamos caminhando ela vai-se ora chegando, ora imediatamente afastando, em movimentos tão suaves que acho que nem ela se apercebe que os estava a fazer. Quando ela aponta uma cabine três portas antes da minha, ‘lembro-me’ que me esqueci das chaves na mesa do salão de jantar. Convido-a para tomar o pequeno-almoço e quando ela não responde imediatamente eu ataco com um “Então está combinado. Como me disse um amigo português: quem cala consente.” Ela cora e eu vou para o bar.

O bar tem o aspecto de um bar na primeira noite de um cruzeiro. Vazio. Três ou quatro almas penadas. Lá está o húngaro. Pelos visto no turno da noite é o responsável pelo bar. Dirijo-me a ele e peço-lhe uma cerveja. Ele resmunga, baixinho e em húngaro, qualquer coisa sobre onde eu podia enfiar a cerveja… Do outro lado do balcão está a florzinha a beber um Cosmo. Pelo ar dos copos vazios, podia fazer uma pequena cidade de vidro. Numa das mesas está um aperaltadinho, talvez inglês, à conversa com uma senhora já não muito nova. À conversa é uma força de expressão, parecia que ela conversava e ele educadamente ia acedendo a ouvi-la, mas não sem uma certa expressão de enfado. Olhei pelas janelas as últimas luzes costeiras e uma voz de trovão pediu ao barman “Mais uma de Alvarinho.” Olhei e diante de mim estava a figura embrutecida e claramente alcoolizada de Ernesto Malvindo, conhecido no mundo do tráfico de armas como “Fada-madrinha”. Apesar de ter negociado com ele várias vezes, não parecia reconhecer-me. Naquele estupor bêbado em que dizemos o que pensamos e não pensamos o que dizemos, olhava para mim como se eu não estivesse lá. De repente, um grito…

1 comentário:

Captain Dildough disse...

Não sei se esta espécie de "Intriga Internacional" se prestará facilmente a uma paródia...
Only one way to find out! ;)