O ar é fresco nesta cidade. Mesmo quando está calor, o ar que corre é sempre fresco e traz o cheiro da água dos canais,
(O que esta gente faz com o desvio de cursos é maravilhoso. E a forma como vendem a atracção…)
não um cheiro pestilento a águas paradas, o cheiro de vida, de peixes a nadarem, barcos a circularem, uma vida ligada. E hoje ela foi trabalhar… Ontem não deu para muito estava cansado, ela estava com um grupo de amigos. Uma cerveja e outra de conversa, queixas do tempo, queixas da comida e da frieza das relações, de como o pessoal e o profissional eram tão diferentes. Eu não sei. Nada de profissional me liga aqui.
(Nem pessoal, para dizer a verdade. Deveria dizer então que ‘nada me liga aqui’? Se o dissesse como tenho a certeza que vou perder o voo que descola daqui a pouco?)
Logo à noite vou jantar com ela.
(E como era bom o dia passar rápido. Assim, eu desejar ser noite e eis que as estrelas se vêem no céu. Não são muitas e o céu não é tão escuro.)
Afinal ela mora duas ruas acima da pensão
(Não que ela tenha de saber.)
e consigo não chegar atrasado. A colega de casa abre-me a porta, alta, magra, o cabelo artificialmente moreno,
(O contrário da Rapariga. Poder-se-ia dizer que coabitavam no mesmo espaço o positivo e o negativo de uma mesma pessoa.)
numa mão um cigarro aceso, na outra um copo de vinho tinto. O olhar já semi-cerrado do copo extra que nunca devia ter sido bebido. Quero-lhe perguntar por Rapariga, mas ainda antes de abrir a boca já ela me sorri
(Um sorriso desprovido de expressão, mas cheio de vontades...)
e pergunta se sou a visita. Respondo que não sou visita, estou só de passagem. “Há muitos que vêm de passagem e nunca mais passam daqui.” Pergunto-lhe se morre assim tanta gente em Cidade. “Morrem por dentro, e renascem, descobrem encantos nos becos escuros, apaixonam-se por telhados de cobre esverdeado e não conseguem nunca mais olhar para outras gentes que não estas. Tu tens esse olhar baço de quem se procura. Não queres entrar?”
Não quero mas acabo por entrar. Enquanto o meu contacto não se despacha, fechado que está num segundo andar, fico aqui na cozinha, sentado à mesa, e vejo a garrafa lentamente a ficar mais vazia e vejo uma segunda, que eu mesmo abro, vazar-se como a primeira. E enquanto passam os copos de vinho conversamos, conversamos e na rua levanta-se um burburinho. Gentes passeiam
(Amanhã não trabalham, é verdade! Hoje deve estar tudo cheio.)
e o pitoresco nocturno aparece. Do outro lado da rua, em frente à sex-shop, duas prostitutas conversam animadamente e, de vez em quando, metem-se com transeuntes. Um deles fica lá a dar-lhe conversa, até que um fulano, aspecto de oriental, vai ter uma conversa com ele. Parece-me ouvir a palavra ‘pagar’ no meio do burburinho. Uma bicicleta passa e quase atropela o turco,
(Sei lá se é turco. Veio-me agora a música o verso “veio ver se está tudo bem com as suas meninas”, mas isso não é o turco, é Conan o Bárbaro.)
que não protesta, mas que é protestado. Humildemente sobe para o passeio e vinga-se no transeunte, que entretanto já está de mão dada a uma das prostitutas.
Eu sei isto porque estou na janela, com a companheira da Rapariga a fumarmos. Descobri agora que fumo. Ela ofereceu-me e não disse que não. Descobri agora que o maço dela não tem cigarros só com tabaco e digo a mim mesmo que a noite a partir daqui só pode melhorar.
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