segunda-feira, março 11, 2013

O expresso 20 *

Sábado de manhã...

A gare apresenta um aspecto pacato... Longe do rebuliço caótico das tardes que marcam a véspera do fim de semana. Na mão o rectângulo azul "viatura 20".
Eis que chega... dez minutos antes... e os poucos transeuntes que deambulam junto à linha 3, agarram em seus volumes, dirigindo-se à bagageira. Entretanto alguns outros abandonam a porta dianteira... A maioria para uma pequena pausa para uma bucha matinal.

Levemente zonzo, fruto do parco pequeno almoço coloco o pequeno saco à direita, mirando os paralelepípedos brancos que me traumatizarão toda a viagem, arrumados a régua e esquadro na parte mais traseira da bagageira lateral. Bilhete cortado e é hora de entrar... A viatura novinha em folha... o contraste do tempo. Ao contrário de muitos outros horários aquele, expresso provinciano direi, troca os anos da sua própria existência, tão novos quanto o cheiro a madeira envernizada e estofos quase por estrear, pela idade avançada dos seus frequentadores.... Acedo ao meu lugar, junto à janela... estranho o quente do estofo... Provavelmente alguém a trocar o conforto do campo pela semi urbe coimbrã...

Aguardo pacientemente o meu companheiro de viagem, à medida que o expresso vai preenchendo paulatinamente os lugares...

Existe sempre uma ténue e ridícula esperança na mente de um homem durante este processo... Quilómetros e quilómetros de alcatrão demonstraram-me sempre o quão agradável é a presença de um jovem rosto feminino ao lado... Nestes casos a viagem é sempre silenciosa e, garanto excelso leitor, sempre inocente. Não tenho particularmente um interesse específico por um rosto ou corpo jovem e esbelto junto a mim. Mas a presença de uma jovem ao meu lado trasmite-me uma sensação da paz inexplicável... Como se o melhor da natureza me escolhesse a mim, pobre ser, para desfrutar da sua companhia por umas horas rotineiras da minha vida.

Mas não... um rosto vermelho e enrugado entra no veículo quase em simultâneo com outros rostos carregados de sabedoria, o leve cheiro da naftalina disfarçado pelo odor forte dos paralelepípedos da bagageira, um corropio de cestos e malas de mão encardidos pelo tempo. Um sorriso fita-me... depressa percebo porque o meu banco ainda estava quente... Um pedido de licença e o pouco jovem senhor marcado pelas agruras da vida, mas com o sorriso castiço de tanta história por contar, quase sem palavras, acede a um lugar que talvez, esse sim, lhe pertença, a meu lado... O autocarro inicia o movimento e... conto paulatinamente os segundo até ao primeiro pretexto para o diálogo ser estabelecido... um mínimo pretexto...

...


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50 km... uma vida ligada ao combate de fogos em edíficios
100 km... a rebeldia e os processos disciplinares
150 km... como os jornalistas dificultam a vida de quem tenta salvar a vida dos outros...

... Mas curiosamente e como por artes mágicas que só a sabedoria dos grandes comunicadores consegue ter, o tédio passa a diálogo, o diálogo a sorrisos, os sorrisos a gargalhadas e por instantes a ausência de um corpo jovem e esbelto dão lugar a toda uma cumplicidade que a sapiência da vida ilumina... e a manhã ganha um novo brilho, só atenuado pelo enjoo de um estômago que ronca, avivado pelo forte cheiro a leitão da bairrada, que provém de uns já esquecidos paralelepípedos na bagageira do veículo... Observo nauseado um documentário sobre sanitas de luxo que passa no ecran e tento esquecer a dor que se forma no estômago enquanto observo os prédios da capital...

Recuso educadamente a oferta de uma cerveja... O ar pela primeira vez austero daquele comparsa relembra-me a velha máxima de não recusar uma oferta... Mais enjoado que embriagado, aperto a mão, pela última vez, daquele estranho companheiro da bucólica manhã... o 20 abandona a linha 12...

E os pombos de Lisboa tornam-se reis e senhores da calma manhã de fim de semana...








* O presente texto, baseado numa experiência pessoal, é uma homenagem a APC e à sua obra "720".

1 comentário:

Chas. disse...

Muito bom.
Vivências são sempre ricas pela sua diversidade e imprevisibilidade. Umas mais vividas, outras mais cultas, outras mais esbeltas, outras mais loucas, outras mais corajosas...

Já tinha saudades da tua prosa, venham mais. :)