segunda-feira, março 31, 2014

Sentires



São 9 horas. Lá fora a chuva cai como se a Primavera se tivesse esquecido de sussurrar ao vento a sua chegada. Cá dentro são 8 horas, pois o meu corpo (tal o tempo em Lisboa) ainda não está a funcionar em horário de verão.

Deixo-me ficar imóvel, de olhos fechados, sentido o calor do édredon na pele e o som da chuva a cair nos beirais. Esta é a minha hora preferida do dia. Aqueles minutos em que a memória ainda não despertou e que, apenas por momentos, não tenho nome, história, ou futuro. Apenas sou. Imóvel. Sentindo. Mas no segundo seguinte, tudo me chega à consciência como uma onda gelada. Pedro. Um nome de pombo. Um nome que não pertence a Lisboa, mas que está gravado por toda a cidade. No miradouro da Graça. No 28. No Camões… 

Vejo-me novamente no elétrico. Estamos sentados lado a lado e os olhos de Pedro brilham enquanto absorve todas as histórias que lhe conto sobre as ruas onde vamos passando. A pouco e pouco começa a contar-me a sua viagem por Portugal e sinto-o relaxar. Quando chegamos ao Carmo e pego-lhe na mão.

- Anda daí! Vou levar-te ao teu miradouro! – Digo, enquanto o puxo para sairmos do elétrico.
- Meu?
- Miradouro de S. Pedro! É por aqui.
Enquanto subimos a Rua da Misericórdia o céu vai-se tornando cada vez mais carregado. O final de tarde trouxe consigo nuvens cinzentas que rapidamente cobrem o céu.
- Sua Santidade… o miradouro!!!
Pedro ri-se enquanto os seus olhos tentam absorver a imensidão de Lisboa que surge diante de nós.
- Uau! Tanta beleza, tanta história…tantas estórias misturadas debaixo dos nossos olhos. Como um puzzle de vidas que encaixam para se tornar em algo maior. – Exclama maravilhado.
- E agora também cá está a nossa. Vês ali o miradouro da Graça? Ali estivemos nós, há poucas horas…
- Sim. Ali eramos estranhos.
- E aqui, o que somos? – Pergunto, olhando para o seu rosto ainda perdido na beleza da paisagem. O ar está tão carregado de eletricidade que torna difícil a respiração.

E de súbito, um clarão rasga o céu mesmo acima do Tejo e um barulho ensurdecedor traz consigo um dilúvio gelado. Não consigo conter uma gargalhada sonora. Perdeu-se o momento… Pedro olha-me meio surpreendido.
- De que ris?
- O S. Pedro não teve misericórdia de nós! – respondo e ambos rimos da chuva e de nós próprios.
Mas o riso de Pedro depressa desaparece, como se uma cortina tivesse caído sobre ele. Os seus olhos verdes transmitem uma dor tal que ferem.
- O que se passa, Pedro?
- Lúcia. Tu fazes-me sentir. Eu não quero sentir. Não posso sentir. Deixei tudo para trás e quando pensei que já estava bem, tu apareces e mudas tudo. Sentir só nos faz mal. Sentir dói. Traz consigo morte, vazio e saudade. Desculpa, mas não posso ficar.
O meu coração bate tão forte que parece que o sinto a sufocar-me. Pego-lhe na mão e coloco-a sobre o meu peito.
- Sentes? Estou viva. Estou aqui e também sinto. Nós não somos passado, Pedro. Aquilo que somos é o espelho daquilo que seremos e não do que já vivemos.
Só consigo ver os seus olhos e ouvir o bombear descompassado do meu coração contra a palma da sua mão. Sinto que Lisboa foi levada pela chuva e que apenas nós existimos neste momento.

O som da campainha traz-me de volta para o presente. Dois toques. É a Aurora. Levanto-me da cama e apanho o robe de cima do cadeirão. O que será que se passa para a Aurora estar aqui tão cedo? Corro a abrir a porta.
- Bom dia Lu!
- Bom dia, irmã! O que se passa?
- Desculpa acordar-te tão cedo, mas temos de falar. Estou preocupada com o Marco…Não sei se é da idade do armário ou não, mas o puto anda muito estranho!

sábado, março 22, 2014

Na rota de Pedro Álvares Cabral

Perante a estátua Marco nada mais viu, todos os reflexos se convergiram sobre a pedra rugosa e molhada dos pés de Antero. A escuridão da noite húmida condensava nuvens cerradas - reflexo de um céu melancólico e rezingão.

No jardim vazio ouvia-se a composição musical e primaveril. Árvores vibravam de histórias nos seus ramos delgados, acenado à poesia crua de suas folhas. Os patos e os gansos dormitavam sob a ovação do pavão macho estridente. As rãs dos pequenos lagos coaxavam, num desespero selvagem pela concorrência dos morcegos citadinos.

A inquietude humana instalou-se. Passaram 5 minutos da hora combinada e os únicos vultos que se vislumbravam na penumbra do jardim - resultantes dos focos motorizados que circundavam a parte externa - permitiam descodificar algumas sombras em êxodo. O medo era colectivo, sete minutos sem iluminação não são habituais na rotina iluminada dos Lisboetas.

Marco impaciente decidiu começar a soletrar pequenos decibéis da sua jovem inexperiência.

- Vim para aqui porque era importante "nem um minuto a mais nem a menos" e agora estou aqui a apalpar sozinho o Barbudo suicida!

-" Embebido n'um sonho doloroso, 
Que atravessam fantásticos clarões,
Tropeçando n'um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso...
"
Encoou uma voz masculina vinda do meio do tudo... e do nada.
A frequência cardíaca de Marco disparou, alimentada pela choque de adrenalina.

- Quem está ai?!
Perguntou Marco enquanto rodava 360 graus em torno do seu eixo.

-"Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céus arroja os seus cachões,
Através duma luz de exalações,
Rodeia-me o universo monstruoso..."

A voz ganhava eco e uma intermitência feminina.

- "Um ai sem termo, um trágico gemido,
Ecoa sem cessar ao meu ouvido,
Com horrível, monótono vaivém...
"

Marco recuou em relação à estátua, procurando um espaço mais amplo.

-"Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma o Bem!
"

- Quem está aí, o que se passa? Não brinquem comigo.
Marco corria agora desesperado pela rua principal na direcção do coreto após ter tropeçado num galho partido.

- Descansa meu jovem, não te fazemos mal.
Tranquilizou uma voz sensual e claramente feminina.

- Quem és tu... quem são vocês?

- Sou a Despertar, o teu despertar....

- AH!! E a outra voz?

- A outra voz é o teu interior Marco, o teu interior!

- O meu interior? Mas estás a brincar comigo? Como sabes o meu nome? Quem são vocês?

Marco acelerou a passada e pulou para dentro do grande coreto. Olhou ciclicamente para toda a periferia na esperança de descobrir alguma forma, mas nada, apenas a escuridão. Após breves minutos tranquilizou-se no silêncio profundo que acabara por se instalar no jardim.

Deitou-se no chão de braços abertos, abriu os olhos e tentou retomar a experiência:

- Está ai alguém? Quem são vocês?

Uma voz rouca e autoritária, acompanhada por um clarão direccionou-se para dentro do coreto:

- Oh Jovem, o jardim fechou! Tens que sair!

Um vulto grande e gordo, de lanterna em mão - aparentemente o segurança do jardim - apontou para a saída mais a norte,  a rotunda da Avenida Pedro Álvares Cabral.

- Peço desculpa, mas estava à espera de encontrar... uma, um familiar que desapareceu.

- Lamento,  encerrei todos os portões e já só falta mesmo este... Meu rapaz já são horas para estares em casa, principalmente depois deste apagão.
Respondeu a voz experiente e responsável, já habituada à rotina de expulsar cidadãos notivagos e incautos.

- Obrigado. Estava com um familiar quando ficou escuro... já deve ter seguido para casa. Talvez seja melhor ir também andando.
Marco, não gostava que o considerassem criança preferia alinhar no tratamento infantil como forma de se desenvencilhar mais depressa das situações incómodas. 

- Moras longe e precisas de companhia?

- Moro já ali, na Rua do Cabo, junto à Saraiva de Carvalho. É perto. Obrigado.

E dirigiu-se em passada larga até ao exterior do Jardim.

- Adeus jovem!
Despediu-se o segurança que se encaminhou atrás dele mas de olho em todos os recantos por explorar.

Marco sentiu-se orgulhoso por ter escapado. Atravessou para o centro da rotunda e olhou bem alto na expectativa que um farolim o orientasse novamente.