sábado, março 22, 2014

Na rota de Pedro Álvares Cabral

Perante a estátua Marco nada mais viu, todos os reflexos se convergiram sobre a pedra rugosa e molhada dos pés de Antero. A escuridão da noite húmida condensava nuvens cerradas - reflexo de um céu melancólico e rezingão.

No jardim vazio ouvia-se a composição musical e primaveril. Árvores vibravam de histórias nos seus ramos delgados, acenado à poesia crua de suas folhas. Os patos e os gansos dormitavam sob a ovação do pavão macho estridente. As rãs dos pequenos lagos coaxavam, num desespero selvagem pela concorrência dos morcegos citadinos.

A inquietude humana instalou-se. Passaram 5 minutos da hora combinada e os únicos vultos que se vislumbravam na penumbra do jardim - resultantes dos focos motorizados que circundavam a parte externa - permitiam descodificar algumas sombras em êxodo. O medo era colectivo, sete minutos sem iluminação não são habituais na rotina iluminada dos Lisboetas.

Marco impaciente decidiu começar a soletrar pequenos decibéis da sua jovem inexperiência.

- Vim para aqui porque era importante "nem um minuto a mais nem a menos" e agora estou aqui a apalpar sozinho o Barbudo suicida!

-" Embebido n'um sonho doloroso, 
Que atravessam fantásticos clarões,
Tropeçando n'um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso...
"
Encoou uma voz masculina vinda do meio do tudo... e do nada.
A frequência cardíaca de Marco disparou, alimentada pela choque de adrenalina.

- Quem está ai?!
Perguntou Marco enquanto rodava 360 graus em torno do seu eixo.

-"Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céus arroja os seus cachões,
Através duma luz de exalações,
Rodeia-me o universo monstruoso..."

A voz ganhava eco e uma intermitência feminina.

- "Um ai sem termo, um trágico gemido,
Ecoa sem cessar ao meu ouvido,
Com horrível, monótono vaivém...
"

Marco recuou em relação à estátua, procurando um espaço mais amplo.

-"Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e afirma o Bem!
"

- Quem está aí, o que se passa? Não brinquem comigo.
Marco corria agora desesperado pela rua principal na direcção do coreto após ter tropeçado num galho partido.

- Descansa meu jovem, não te fazemos mal.
Tranquilizou uma voz sensual e claramente feminina.

- Quem és tu... quem são vocês?

- Sou a Despertar, o teu despertar....

- AH!! E a outra voz?

- A outra voz é o teu interior Marco, o teu interior!

- O meu interior? Mas estás a brincar comigo? Como sabes o meu nome? Quem são vocês?

Marco acelerou a passada e pulou para dentro do grande coreto. Olhou ciclicamente para toda a periferia na esperança de descobrir alguma forma, mas nada, apenas a escuridão. Após breves minutos tranquilizou-se no silêncio profundo que acabara por se instalar no jardim.

Deitou-se no chão de braços abertos, abriu os olhos e tentou retomar a experiência:

- Está ai alguém? Quem são vocês?

Uma voz rouca e autoritária, acompanhada por um clarão direccionou-se para dentro do coreto:

- Oh Jovem, o jardim fechou! Tens que sair!

Um vulto grande e gordo, de lanterna em mão - aparentemente o segurança do jardim - apontou para a saída mais a norte,  a rotunda da Avenida Pedro Álvares Cabral.

- Peço desculpa, mas estava à espera de encontrar... uma, um familiar que desapareceu.

- Lamento,  encerrei todos os portões e já só falta mesmo este... Meu rapaz já são horas para estares em casa, principalmente depois deste apagão.
Respondeu a voz experiente e responsável, já habituada à rotina de expulsar cidadãos notivagos e incautos.

- Obrigado. Estava com um familiar quando ficou escuro... já deve ter seguido para casa. Talvez seja melhor ir também andando.
Marco, não gostava que o considerassem criança preferia alinhar no tratamento infantil como forma de se desenvencilhar mais depressa das situações incómodas. 

- Moras longe e precisas de companhia?

- Moro já ali, na Rua do Cabo, junto à Saraiva de Carvalho. É perto. Obrigado.

E dirigiu-se em passada larga até ao exterior do Jardim.

- Adeus jovem!
Despediu-se o segurança que se encaminhou atrás dele mas de olho em todos os recantos por explorar.

Marco sentiu-se orgulhoso por ter escapado. Atravessou para o centro da rotunda e olhou bem alto na expectativa que um farolim o orientasse novamente.


4 comentários:

APC disse...

Muito engraçado! Quando falamos com isto não fiquei nada com esta ideia! Aliás, não sei se tinha uma ideia muito clara do que ias fazer! agora fiquei curioso por saber por onde continua a história.... e ainda temos a outra sobre Lisboa a decorrer! :)

Chas. disse...

Ao reler o teu decidi fazer algumas modificações à ideia base e entrar por mares não navegados. Eu queria ter percorrido mais algumas estátuas mas achei que iria perder-me no Jardim, portanto fiquei por três. :) E fica mais um pedaço de terra aberto para novas conquistas literárias.

alphatocopherol disse...

Seguimento muito válido! Bastante bom! Ora isto é sem dúvida para continuar! "Ora acheguem-se!"

APC disse...

tás-te a chegar à frente, é?