O Marco até podia ser um jovem
normal, se existissem exemplares disso: jovens normais! Por definição, os
jovens são todos “não normais”, diferentes, peculiares, se quisermos! O Marco
era, à sua maneira, peculiar. Vestia-se sempre de preto, as botas de biqueira
de aço sempre perfeitamente engraxadas, calças de ganga preta com uma corrente
a segurar as chaves, t-shirt preta, uma sweat (preta, claro está), e um casaco
se estivesse frio… As meias e os boxers também eles pretos… Chapéu de chuva:
nunca… Um impermeável, às vezes! Ia às aulas durante o dia, de resto não se sabe muito bem onde andava nem o que fazia, nem quais as suas brincadeiras favoritas, e nem sequer qual o seu clube de futebol,
dizem os que o conhecem pouco, porque também há os que não o conhecem quase
nada… Sempre foi curto de palavras!
Se em muitos destes jovens pode ser difícil
explicar quando é que está “anormalidade” se começou a manifestar, no caso do
Marco era perfeitamente evidente: era “assim” desde de que nasceu! Talvez até
antes, quando ainda estava no ventre da sua mãe! A avó Jacinta veio da terrinha
para ajudar a mãe do Marco com as tarefas da casa no último mês de gestação
daquele que seria o seu primeiro e único filho… No ínicio de junho de 1989
profetizou a mesma avó que este rapaz havia de nascer a 19 do mesmo mês, em dia
de lua-cheia, porque os rapazes nascem sempre em dia de lua cheia… Mas
enganou-se! O Marco nasceu 3 dias antes, a 16 de junho, e até os deuses se
enraiveceram… nessa noite choveram trovões em Lisboa com uma força tal que
muito juram a pés juntos que parecia ser de dia… Alguns ainda se lembram deste
dia como a pior trovoada na região de Lisboa de todo o sempre! Faltam provas
que corroborem estes testemunhos.
Na manhã seguinte a avó Jacinta foi visitar
os dois à Maternidade Alfredo da Costa, e ao entrar naquele quarto era como se
já soubesse o que tinha acontecido! Nunca mais disse uma palavra a sacana da
velha… nem à filha nem ao neto, nem ao falecido marido quando o ia visitar ao cemitério, nem ao padre da aldeia… Nunca mais falou! Ficou muda, coscuvilhavam
as vizinhas… Ou então, agora tem a mania que é senhora porque tem um neto que
nasceu na Maternidade, dizia a outra! E a avó Jacinta, era como se não ouvisse,
ali sentada ao lado delas sem dizer uma palavra! Nunca mais falou, nem quando
foi internada de urgência abriu a boca para falar com o médico ou se queixar
das dores… Foi assim, há quase 11 anos atrás!
Hoje, é terça-feira, 9 de maio de
2000. Para o Marco, e todos nós, podia ter sido um dia normal! Podia… mas só
até às 22h! Nesse momento, enquanto Marco termina o último fio de esparguete
toca o telefone, a mãe chama-o e diz que é para ele, uma voz abafada do outro lado
da linha diz:
- Aparece no Jardim da Estrela ao
pé da estátua do Antero de Quental às 22h40m, nem um minuto a mais nem um
minuto a menos! Tchlim!
A mãe olhou-o como que censurando
a hora de sair de casa, mas há muito tempo que já não dizia nada! O Marco pegou
no casaco e saiu porta fora! No elevador, uma memória da sua infância assombrou-lhe
pensamento, mas não ligou. Ao sair à rua verificou o relógio, e percebeu que
podia ir a pé.
Chegou à entrada do jardim da
Estrela às 22h38m, e sorriu de orgulho para si mesmo. A medida que se
aproximava do recanto do poeta foi imaginando a sua silhueta como que vergada e
as enormes barbas. No momento em que está a seus pés: escuridão. Sim, escuridão
imediata. PAM! Em todo o lado… a cidade toda a cidade às escuras… No dia
seguinte, o ministério, ou a EDP ou REN iriam culpar uma cegonha do apagão
generalizado a sul do país…. Mas apenas o Marco, o Antero e o dono da voz ao
telefone sabiam a verdadeira razão daquele apagão!
6 comentários:
alguém "agarra" neste pedaço de prosa?
Que bom de ler :) Puseste a fasquia alta!
Absolutamente soberbo!!!
Fiquei fascinado sobretudo com uma coisa, o factual dentro do conto em si. Se 9 de Maio de 2000 foi de facto a noite do grande apagão (e até topei aqui uma ligaçao muito interessante ás teorias fantásticas dessa noite), já o 16 de Junho de 1989 me surpreende ainda mais. Nesse dia uma reanálise em motor de busca dedicado insinua sobre o território uma "cut off low", mecanismo que costuma desencadear as célebres "trovoadas de verão". No entanto não encontrei mais info... quer-me parecer que a coincidência não será inocente. Se o for caramba!
Mto bem escrito. Verifico um cuidado nas datas pois lembro de ambos os fenómenos. Só acho para um miúdo de 11 anos, ou quase, mto prematuro. quem pega?
@ Jo: Muito obrigado, mas não estou certo que a fasquia esteja assim tão alta....
@alpha: é claro que as datas não são por acaso! posso explicar o que aconteceu! começou tudo por uma pesquisa sobre o apagão da cegonha, sobre o qual não há muito pela net... fui procurar onde achei que talvez alguém falasse sobre isso, e eis que encontrei o seguinte post: http://www.meteopt.com/forum/eventos-meteorologicos/eventos-meteorologicos-raros-na-zona-de-lisboa-2989.html (ver a segunda resposta, a do cm3pt). Até porque em 1989 eu ainda não morava em Lisboa.... No entanto, e como refiro no texto não encontrei mais nenhum relato sobre a tempestade! Até porque os registos online do IPMA, do IST e do observatório D. Luiz não vão até tão longe... Fico contente de saber que pelo menos as condições atmosféricas estavam reunidas! hehehehehe
@Chas.: eu também achei precoce... Acontece que nas mminhas contas originais... achei que ele teria 21 anos na altura do apagão (dahhhh), e ao rever o texto antes de postar é que cai na realidade e percebi que só tinha 11.... mudei as referências à faculdade e ao emprego num bar obscuro ( tenho pena que faltem, mas isso é que ficava muito estranho, heheheehe) e voltei a ler o texto! acho que até é capaz de resultar melhor assim! Se fores a ver bem, hoje em dia este "menino" está quase a fazer 25 anos! e talvez em tão tenra idade possam acontecer coisas mais fantásticas... sei lá....
Obrigado pelas criticas e fico à espera que alguém pegue nisto! :)
Antes de ler o texto, permito-me um comentário:
11 anos e emprego num bar obscuro é mais do que viável. Agora, deve é ser colocado na PENAL... =P
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