segunda-feira, abril 28, 2014

Idade do armário

Lúcia, ainda enrubescida e ofegante das memórias que há muito pouco tempo brincavam nos seus pensamentos, ficou instantaneamente pálida e … como se todo o seu sangue se tivesse congelado em simultâneo!

- Entra….. herg! Bom dia! – disse, enquanto concentrava todas as suas energias em manter um aspecto sereno – Entra, vou fazer um chá!

Aurora notou um certo desconforto na irmã, mas não conseguiu identificar a sua origem.

- Tens companhia? – atirou à queima roupa, afinal eram as duas adultas, e apesar de não ter crescido juntas, da diferença de idades, e de certa forma não terem a cumplicidade que muitas irmãs partilham, eram ainda assim bastante próximas, e poder-se-ia dizer que não guardavam segredos uma da outra.

- Não… - respondeu Lúcia com a voz, ainda, um pouco intermitente – Ainda estava a dormir. Quer dizer, ainda estava na sorna na cama, porque já tinha acordado há um bom bocado… Mas não me apetecia levantar! Deve ser da mudança de hora! – Lúcia sorriu para a irmã e tentou parecer um pouco mais desperta – Senta-te enquanto faço o chá! Earl Gray, ou preferes outra coisa?

- Desculpa – respondeu a irmã! – Achei que já estavas acordada, acordas sempre cedo! Por mim Earl Gray é perfeito, bem sabes…

Lúcia encheu uma cafeteira de água e ligou o gás do fogão, tirou um pouco de pão do dia anterior do armário e cortou em fatias para torrar… Mas enquanto cortava as fatias de pão o seu pensamento voava para muito longe daquela cozinha! Mas para uma cozinha também, mais precisamente para o dia em que a avó Lúcia a foi buscar à terra para vir morar para Lisboa… Mais precisamente o dia em que nasceu o Marco! Lúcia tinha seis anos, e a sua mãe ficara muda de um momento para o outro, não podia continuar a viver naquela casa! Quer dizer, poder podia, mas não era certamente o ambiente indicado para educar uma criança, e sendo assim a avó Lúcia foi recolher a neta com o mesmo nome e criou-a como se fosse sua filha! Lúcia só percebeu o porquê da mudez da mãe na noite em que morreu a sua avó… Lembra-se como se tivesse acontecido na noite passada, alias o normal é acordar a pensar que acontecera ainda na noite passada e a relembrar palavra por palavra, suspiro a suspiro as últimas confissões da avó… Lúcia voltou um pouco mais tarde da escola nesse dia, porque tinha ficado na malandrice com o João, que era o seu namorado na altura. Chegou a casa e encontrou a avó na cama, o que não era nada habitual! Aliás, nunca tinha acontecido! Ao ver aquilo, Lúcia, a neta, uma jovem de 17 anos, com algo mais que hormonas a circular no seu sangue ficou claramente transtornada, e talvez até um pouco paranóica. A avó descansou-a a dizer que estava tudo bem, que era certamente culpa da tempestade que se ia fazer sentir nessa noite… Lúcia fez o jantar, e sentou-se ao pé da cama da avó, ainda sem saber, que estavam a partilhar a última refeição juntas. Naquela noite a avó contou-lhe tudo. Tudo o que aconteceu, contou-lhe porque razão a sua mãe ficara muda, e porque é que Lúcia teve de vir morar para Lisboa… Lúcia lembra-se de cada palavra… E do último suspiro da avó, com ele apagaram-se as luzes, não só daquela mulher de mãos ásperas e coração mole, mas de toda a cidade e de mais de metade do país… Lúcia não chorou, mas ficou triste e as nuvens escuras que invadiram o seu olhar nunca desapareceram completamente, e se olharmos com atenção ainda podemos ver bem lá no fundo, depois do olhar luminoso como que uma bruma, uma opacidade… Ainda podemos perceber o peso de uma nuvem escura no horizonte de um radiante dia de sol!
E aquela água que lentamente vai levantando fervura dentro da cafeteira é como se fosse dentro de Lúcia… Como se fossem todos estes pensamentos a agregarem-se em minúsculas bolhas de ar que crescem e logo saltam pela tampa… E tudo isto borbulhava cada vez mais intensamente na sua cabeça… Será que a irmã sabia que ela sabia? Porque é que lhe veio pedir conselhos sobre o filho a ela?

Porquê a mim, se eu nem tenho filhos? Aliás, sou praticamente da idade do Marco… OK, sou 6 anos mais velha… mas seis anos não são nada… Nem conheço ninguém, para além da Aurora, que tenha filhos… Ela certamente sabe mais de miúdos que eu… Eu nem nunca tive um animal de estimação… quer dizer tive uns quantos namorados, mas esses não contam, pois não? E por “uns quantos” não quero dizer muitos, não se ponham já com ideias… Tive a quantidade certa… OK?

A água da cafeteira entrava estava agora a ferver violentamente, Lúcia, enquanto colocava o chá, perguntou à irmã:

- O que é a idade do armário?

5 comentários:

alphatocopherol disse...

E aqui faço o comentário que engloba os dois últimos textos. Numa história que eram duas e que se tornou uma, e que voltou a duas faltava isto. Duas biografias, duas histórias unidas, duas histórias que misturam os sentidos e que separadas se tornam um sentido único. Brilhante! Se há algo que adoro neste grande autor é a capacidade que tem quando centra a história numa só pessoa. É um autor de personagens... Personagens que ficamos a conhecer em poucas linhas... personagens que independentemente de onde partem se tornam "do autor" que ganham vida. Como sempre (e tão bem) o normal é uma narrativa... o itálico é entrar num mundo. Faltam palavras... E ainda bem!

Chas. disse...

Comentario para os dois textos. Gostei bastante da continuidade e do enrijecer das ligações. Ficam por explorar algumas que se podem adensar no futuro após este bom catalisador. Quem se segue? Se me derem tempo estou in...

APC disse...

eh pah! Obrigado aos dois pelos comentário!

@alpha: já falamos melhor sobre isso de ser um autor de personagens! confesso que não acho nada! acho mesmo que sou mais de espaços/situações/momentos.... mas não sei! :)

@Chas: por mim estás à vontade! :) pegas nos dois? ou só num?

P.S.: aquelas palavras para provar que não sou um "robot" são: "evoilst comes".... eh pah já almocei, e mesmo assim eu é mais tremoços! ;)

Unknown disse...

Não concordo muito com o alpha. Para mim o APC é um fotógrafo. Um fotógrafo de cenas, de sentimentos, de almas. Consegue parar o tempo da narrativa e fazer-nos ver, através da perspectiva dos personagens, cada detalhe como se o estivéssemos a presenciar fisicamente.

Uma vez mais, foi um excelente desenvolvimento para a história e abriu caminho para uma serie de novas possibilidades.

ps- adorei o detalhe da comparação dos sentimentos com as bolhas de ar na agua em fervura.

APC disse...

Obrigado Fangshua! :) só posso concordar com as tuas palavras, se bem que eu não me teria enaltecido tanto! ;)

sobre a àgua a ferver é o conforto dos lugares comuns! Às vezes funciona, outras é só palha! acho que aqui se justifica! acho que dá um certo sentido! um lugar comum para te agarrares na "fantasia" da história!

oreithmi was!