sábado, agosto 01, 2009

A Torre de Marfim

Contemplei, admirado, as suas paredes esbranquiçadas. Ao longe pareciam ser de um branco alvo e imaculado, mas à medida que o metro me levava mais perto, percebi que aqui e ali estava manchada com traços de cinza e azul. Já mais perto, mesmo junto à porta, reparei que era de um cinza com traços de preto, sinais evidentes da sua idade.

Chegava com sonhos e ilusões de grandeza. Era ali que se reuniam os maiores génios da sua actualidade. No cimo daquele monte, o ambiente era propício ao desenvolvimento intelectual. À medida que me perdia, apercebia-me da vedação, que deixava de fora daquele ambiente privilegiado a ralé e a escumalha intelectual que passeiam pelas nossas ruas. Uma vedação, feita de rede aqui, muros de cimento ali e com portões em tons de verde, com vinhas nas vedações de arame circundantes, colocados em todo o perímetro.

Ali estava uma ilha no mar de ignorância. Era o local, friso-o novamente, onde as mais brilhantes mentes do nosso tempo se reuniam e eu queria absorver todo o seu saber. Subi os três degraus para a base da torre e entrei, passando o balcão de segurança onde ninguém estava e contemplando o mar de mesas onde uma multidão trabalhava.

O grande átrio de mesas era cortado mesmo no centro por uma grande escadaria. No momento em que pisei o primeiro degrau uma voz de trovão ecoou por todo o átrio. “E há que ter em linha de conta os créditos! Não podemos esquecer os créditos. Os créditos são fundamentais!” procurei em vão a fonte de tal afirmação e descobri ser um indivíduo de baixa estatura, com uma barriga de cerveja bem proeminente, de cabelos grisalhos e de aspecto oleoso apanhados num rabo-de-cavalo que lhe chegava a meio das costas. Rodeavam-no algumas das mulheres mais horrendas que já vi na minha vida, apensa comparáveis a descrições de criaturas das trevas em livros de fantasia. Desciam as escadas e ao passarem por mim agiram como se eu não existisse, empurrando-me contra o corrimão azul, que abanava como uma seara ao vento, à medida que desciam as escadas. “O problema é que os alunos não estão para se dar ao trabalho, é melhor não exigirmos muito. Há que falar com aqueles que são demasiado exigentes, porque se a proposta de avaliar em função do mérito avançar, temos de estabelecer quotas de aprovação!” continuava a dissertar indivíduo a quem a multidão de bajuladoras chamava de Prof. Posta.

Confesso que a impressão que aquele grupo causou em mim foi de estranheza e estupefacção. Estava estupefacto com o que ouvia, e causava-me estranheza a forma messiânica como o referido Prof. Posta se passeava. Por momentos tive a sensação estranha que ele se sentia o dono do edifício, a forma como balanceava não os braços mas o ombros ao andar, os braços arqueados como um culturista, e que aquela multidão que o seguia mais não era do que a sua merecida multidão de servidoras.

Num dos cantos do edifício havia uma escada em espiral que facultava o acesso a todos os pisos. Decidi-me a subi-la. Havia-me candidatado a um bolsa de investigação com um tal de Prof. Saudita, que tinha o seu laboratório no sexto piso deste edifício. Estava bastante entusiasmado com a proposta e o convite pronto que havia recebido para vir à entrevista deixava-me com grandes esperanças.

Ao passar pelo segundo piso uma outra voz fez-me parar de subir escadas. No corredor imediatamente em frente uma senhora, de aspecto um tanto ou quanto tresloucado, falava com um grupo de alunos que tentava, até eu me apercebia à distância, desesperadamente sair dali. “Então meus filhinhos,” dizia ela com uma voz meio rouca “não querem uma bolsa? São cem euros por seis meses de trabalho intenso no meu laboratório a tentar descobrir uma maneira de furar uma patente para um anti-viral famoso” continuava e ria-se e tentava outra abordagem “E já viram o triângulo das minhas bermudas?” A imagem tinha tanto de horripilante que só mencioná-la ainda me dá calafrios. Face ao tenebroso daquela personagem, que vim a saber posteriormente dava pelo nome de Prof.ª Quinha, decidi subir as escadas.

“Olhe lá, seu paneleirote, importa-se de tirar a minha coluna do seu rabo?” gritava uma estridente voz ao fundo do corredor, mas eu ouvia-a como se estivesse ali logo ao meu lado. “Veja lá como fala comigo! Olhe que eu acuso-a de discriminação sexual!” dizia um fulano de voz pouco grave mas rouca, de rabo empinado, calças verde alface, com laivos de fluorescente, uma camisa de um rosa intenso e que ao correr corredor acima balouçava mais o rabo que uma modelo na semana da moda de Milão. O Prof. Rabe era famoso por não necessitar de orçamentos para equipar o seu laboratório e parecia estar a meio de uma ida às compras.

Continuei a subir e no quarto piso sou surpreendido por um fulano com uma larga calva, com uma coroa de cabelos brancos e encaracolados, com uns óculos fininhos e de olhos imensamente abertos, para lá do que pensei possível a um ser que não seja arraçado de sapo. O Prof. Ascensio Ilevattori recolhia assinaturas para aquilo que considerava ser um atentado à excelência académica: o mau funcionamento dos elevadores no edifício. Falava e dissertava como um seu amigo inglês havia, numa recente visita, ficado muito cansado ao subir os três lanços de escadas até ao seu laboratório.

No piso seguinte o cansaço começou a apoderar-se de mim, certamente por fazer tantas paragens, pelo que decidi não parar e seguir directamente para o sexto piso. Tive no entanto tempo para ver um poster a anunciar a abertura do novo curso em Bio-Engenharia Molecular em Nanoquímica Verde Sustentável. O sexto piso parecia-me menos estranho que os anteriores pois não se via gente nos corredores, apenas alguns posters referentes a trabalhos famosos do departamento, como por exemplo “A Handersenase e a Fointanase: um conto de enzimas para toda a família” e “Estudo do grupo heme em anfíbios: o caso do cachalote (Cetacius patranhus)”, estudos que de resto são marcos na ciência em Portugal.

Ao fundo do corredor ficava o gabinete do Prof. Saudita. A entrevista correu muito bem. O Prof. propôs-me inclusivamente pensar em fazer o doutoramento com ele. Aparentemente o facto de ter o currículo científico de uma amêijoa e ter acabado o curso com uma média de 12 não interferiam porque como ele disse “isto fala-se com o júri e a coisa passa sempre”.

Quando passei novamente o portão, havia uma questão que ainda levava comigo e que me fez repensar a função daqueles muros. Ao falarmos de todo o projecto perguntei, um tanto ou quanto inocentemente, qual a aplicação prática de tudo o que faríamos. O “não se preocupe que isso logo se vê” que recebi como resposta deixou-me um pouco abananado e perguntei de seguida se havia alguma empresa a colaborar com o departamento. A resposta de “uma ou duas mas isso é só em coisas muito específicas, aqui não temos disso” é que me afastou. Percebi então para que servem muros numa instituição de excelência e a resposta que encontro é que não é para deixar a mediocridade do lado de fora…

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