quarta-feira, julho 09, 2014

Lisboa (Por entre as sombras e o lixo)

Lisboa… Cais do Sodré! A noite cai vagarosamente aqui. Olho em redor e vejo a multidão, caras fugidias e fechadas depois de um dia de trabalho e os olhos abertos a custo, que clamam por descanso. Aqui e ali uma comadre e outra trocam a rotineira cusquice. Ao redor a escuridão do calcário sujo dá ainda um tom ainda mais sombrio a toda a sujidão da zona portuária. Terá sido a cheia do rio ou a vazão do homem quem encheu as esquinas de entulho? Lá ao fundo, junto à rua do Alecrim, uns tímidos néons anunciam bares de especialidade duvidosa, onde se encontram já certamente a Alice e a Coxa… O Quim Navalhas também ciranda já as suas meninas, não venha o Ruca Batuta tentar levá-las para Monsanto…

Encosto-me a uma parede, meio caminho entre o barco e o comboio, enquanto vejo os movimentos na praça. Com mestria enrolo um charro que ponho logo à boca. Já combinei tudo com o Miguel e só nos falta droga suficiente para adormecer um elefante. Levo a mão ao bolso. Ainda lá tenho o monte de notas! Entro na praça e dirijo-me à fila de táxis que aguardam junto à Hora Legal. Dirijo-me ao primeiro e entro.
“Casal Ventoso, se faz favor!” digo ao taxista, com o charro dependurado no canto da boca. É hoje que parto deste buraco sem fundo. Eu e o Miguel!

Lisboa… Uma nuvem de fumos e salpicos de rio, escurecida pela multidão em movimento frenético, para trás e para diante, sem rumo certo e sem destino, embrutecida pela rotina do dia-a-dia. Hoje cansámo-nos e decidimos não deixar que a rotina se apoderasse de nós e, num acto de loucura, decidimos que algum dos barcos que descarregam na Rocha Conde de Óbidos irá para um lugar melhor que este.

“Aqui dentro não há dessas porcarias.” Responde à bruta o taxista. É um desses típicos taxistas de Lisboa: camisa às riscas, com os dois botões de cima abertos e os cabelos do peito cuidadosamente penteados. A unha do dedo mindinho muito longa e cuidada, serve essencialmente para limpar os ouvidos, com que escuta minuciosamente as conversas da clientela. “Está apagado, não se preocupe.” Respondo-lhe, enquanto me sento.

“Para o Casal não o levo. O melhor que lhe faço é deixá-lo em Alcântara-Terra.” Responde-me, ainda visivelmente contrariado. Para ir para onde ele me deixava, o 15 tinha servido e ainda era mais barato “e se me deixar na avenida” pergunto, “quer ir até Alcantâra eu levo-o, senão pode sair com as suas porcarias”. Não me lembro do 15. “Pode na ponta dos armazéns então?”

Assim que ele me larga dirijo-me a uma cabine telefónica. Que fica longe, do outro lado dos armazéns. Não tenho muitos trocos, mas preciso de confirmar com o Miguel.

“Estou” atende-me ele.

“Já estou em Alcântara. Vens cá ter ou vou andando sem ti?”

“Espera por mim no Pão de Açúcar.”

Dirijo-me ao supermercado e espero por ele, no bolso esquerdo um saco com os restos de cavalo, e no esquerdo haxe para uma semana. Enrolo um charro, coloco uma linha no meio, não sei se alguém já se lembrou desta merda, acendo-o e começo a sorver vagarosamente. Apercebo-me então que a escuridão vai caindo com todo o seu peso. Fica escuro, mas as luzes de um amarelo pálido disfarçam isso, impelindo-nos a todos para que não paremos. Pobre artifício dos tempos modernos! Olho bem à minha volta. Mesmo os que entram para o super não se apercebem, mas todos como que cantam um cântico triste, sonolento, uma música de embalar, que nos entorpece os membros, nos deixa moles, letárgicos, imóveis…

Reparo que o meu charro está quase no fim. Reparo que olham para mim de lado e se afastam. Sinto falta de calor humano e sento-me, encostado à parede, o Miguel Pedro não terá dificuldades em me encontrar se ficar aqui assim. Enquanto espero fascino-me, por um qualquer desígnio misterioso, com o monte de lixo que se amontoa junto à porta do armazém do super. Vejo uma caixa a remexer-se e de baixo sai uma enorme ratazana, que me olha por uns instantes e segue o seu caminho para dentro do armazém.

Acordo com o frio da noite e as mãos do Miguel a baterem-me no rosto. Deixei-me adormecer e agora apenas vultos passam à minha frente, um esporádico carro a acelerar e os ratos e ratazanas a rastejar. Olho para as horas. Não passou muito tempo, mas agora o céu é de um escuro como carvão, brilhando apenas um pouco quando passa um carro com os seus faróis, e outro, e logo outro, sucedendo-se até ao infinito.
“Cabrão de merda” diz o Miguel “tinhas de te pôr a fumar sem mim!” e dá-me mais um valente estalo para eu aprender. Tento pôr-me de pé e não consigo. O Miguel dá-me um bico de lado, pega-me pelos ombros e põe-me de pé. “Nem penses que vou sozinho, seu filho da puta!” Pomo-nos a caminho do Casal. Com o ar frio a bater-me no rosto e um cheiro a escape seguimos Avenida de Ceuta acima, merecendo olhares reprovadores dos transeuntes. Não me lembro muito bem do caminho até ao Casal. Nem me lembro muito bem do que se passou lá, só me lembro do Miguel a gritar “Foge que o filho da puta vai-me…” um tiro cortou-lhe a palavra e desatei a correr. Não queria saber o que estava ali, já fazia um esforço suficiente para não cair enquanto corria Casal abaixo por entre sombras estranhas e montes de lixo acumulado e os tropeções que dava em mim mesmo e no calcetado irregular.


Só quando cheguei a Alcântara-Terra é que me apercebi que o Miguel tinha o dinheiro todo. Na altura pensei “Cabrão de merda.”, mas o que me saiu da boca foi um “Raios part’ó dealer”.” O meu pensamento era fugir. Se antes queria fugir, agora mais motivos tinha. O medo impelia-me e nem me lembrei que, no estado em que eu estava, se me quisessem já me tinham. Segui para a Rocha Conde de Óbidos. Estavam a descarregar um barco. Fiquei ali o que restava da noite toda a olhá-los. Quando, a meio da madrugada acabaram, aproveitei uma distracção e entrei à socapa no barco. Não queria ser um clandestino e dirigi-me ao capitão. Não foi difícil de convencê-lo a deixar-me seguir a bordo do barco. Não queria saber a minha história desde que eu trabalhasse bem. Perguntei-lhe para onde ia e disse-me que tinha negócios a tratar em Barcelona. Era longe, agradava-me!

2 comentários:

R.B. NorTør disse...

Faz anos que escrevi aqui no blog uma espécie de pós-prefácio ao álbum de Mão Morta, Mutantes S.21. Na altura era uma parte de um plano maior, que envolvia fazer um conjunto de textos inspirados nas músicas do álbum.

O texto para Lisboa, faixa de abertura e ponto de partida esteve a dormir vários anos. Nunca gostei dele, confesso. No entanto hoje li-o e gostei.

Como gostei aqui segue para ser comentado. Prometo, um dia, acabar a viagem.

alphatocopherol disse...

Gosto sobretudo dos cenários criados. O entrar dentro de uma personagem e conseguir penetrar num mundo que ouvimos em relatos ou com o qual nos cruzámos eventualmente. Notam-se aqui laivos de um lado negro de Lisboa que, a existir ainda, é uma realidade camuflada, um degredo anestesiado com pilhas de lixo em aromas de alfazema ou rosa. Gostei!