Lisboa… Cais do Sodré! A noite cai vagarosamente aqui. Olho
em redor e vejo a multidão, caras fugidias e fechadas depois de um dia de
trabalho e os olhos abertos a custo, que clamam por descanso. Aqui e ali uma
comadre e outra trocam a rotineira cusquice. Ao redor a escuridão do calcário
sujo dá ainda um tom ainda mais sombrio a toda a sujidão da zona portuária.
Terá sido a cheia do rio ou a vazão do homem quem encheu as esquinas de
entulho? Lá ao fundo, junto à rua do Alecrim, uns tímidos néons anunciam bares
de especialidade duvidosa, onde se encontram já certamente a Alice e a Coxa… O
Quim Navalhas também ciranda já as suas meninas, não venha o Ruca Batuta tentar
levá-las para Monsanto…
Encosto-me a uma parede, meio caminho entre o barco e o
comboio, enquanto vejo os movimentos na praça. Com mestria enrolo um charro que
ponho logo à boca. Já combinei tudo com o Miguel e só nos falta droga
suficiente para adormecer um elefante. Levo a mão ao bolso. Ainda lá tenho o
monte de notas! Entro na praça e dirijo-me à fila de táxis que aguardam junto à
Hora Legal. Dirijo-me ao primeiro e entro.
“Casal Ventoso, se faz favor!” digo ao taxista, com o charro
dependurado no canto da boca. É hoje que parto deste buraco sem fundo. Eu e o Miguel!
Lisboa… Uma nuvem de fumos e salpicos de rio, escurecida
pela multidão em movimento frenético, para trás e para diante, sem rumo certo e
sem destino, embrutecida pela rotina do dia-a-dia. Hoje cansámo-nos e decidimos
não deixar que a rotina se apoderasse de nós e, num acto de loucura, decidimos
que algum dos barcos que descarregam na Rocha Conde de Óbidos irá para um lugar
melhor que este.
“Aqui dentro não há dessas porcarias.” Responde à bruta o
taxista. É um desses típicos taxistas de Lisboa: camisa às riscas, com os dois
botões de cima abertos e os cabelos do peito cuidadosamente penteados. A unha
do dedo mindinho muito longa e cuidada, serve essencialmente para limpar os
ouvidos, com que escuta minuciosamente as conversas da clientela. “Está
apagado, não se preocupe.” Respondo-lhe, enquanto me sento.
“Para o Casal não o levo. O melhor que lhe faço é deixá-lo
em Alcântara-Terra.” Responde-me, ainda visivelmente contrariado. Para ir para
onde ele me deixava, o 15 tinha servido e ainda era mais barato “e se me deixar
na avenida” pergunto, “quer ir até Alcantâra eu levo-o, senão pode sair com as
suas porcarias”. Não me lembro do 15. “Pode na ponta dos armazéns então?”
Assim que ele me larga dirijo-me a uma cabine telefónica. Que
fica longe, do outro lado dos armazéns. Não tenho muitos trocos, mas preciso de
confirmar com o Miguel.
“Estou” atende-me ele.
“Já estou em Alcântara. Vens cá ter ou vou andando sem ti?”
“Espera por mim no Pão de Açúcar.”
Dirijo-me ao supermercado e espero por ele, no bolso
esquerdo um saco com os restos de cavalo, e no esquerdo haxe para uma semana.
Enrolo um charro, coloco uma linha no meio, não sei se alguém já se lembrou
desta merda, acendo-o e começo a sorver vagarosamente. Apercebo-me então que a
escuridão vai caindo com todo o seu peso. Fica escuro, mas as luzes de um
amarelo pálido disfarçam isso, impelindo-nos a todos para que não paremos.
Pobre artifício dos tempos modernos! Olho bem à minha volta. Mesmo os que
entram para o super não se apercebem, mas todos como que cantam um cântico
triste, sonolento, uma música de embalar, que nos entorpece os membros, nos
deixa moles, letárgicos, imóveis…
Reparo que o meu charro está quase no fim. Reparo que olham
para mim de lado e se afastam. Sinto falta de calor humano e sento-me,
encostado à parede, o Miguel Pedro não terá dificuldades em me encontrar se
ficar aqui assim. Enquanto espero fascino-me, por um qualquer desígnio
misterioso, com o monte de lixo que se amontoa junto à porta do armazém do
super. Vejo uma caixa a remexer-se e de baixo sai uma enorme ratazana, que me
olha por uns instantes e segue o seu caminho para dentro do armazém.
Acordo com o frio da noite e as mãos do Miguel a baterem-me
no rosto. Deixei-me adormecer e agora apenas vultos passam à minha frente, um
esporádico carro a acelerar e os ratos e ratazanas a rastejar. Olho para as
horas. Não passou muito tempo, mas agora o céu é de um escuro como carvão,
brilhando apenas um pouco quando passa um carro com os seus faróis, e outro, e
logo outro, sucedendo-se até ao infinito.
“Cabrão de merda” diz o Miguel “tinhas de te pôr a fumar sem
mim!” e dá-me mais um valente estalo para eu aprender. Tento pôr-me de pé e não
consigo. O Miguel dá-me um bico de lado, pega-me pelos ombros e põe-me de pé.
“Nem penses que vou sozinho, seu filho da puta!” Pomo-nos a caminho do Casal.
Com o ar frio a bater-me no rosto e um cheiro a escape seguimos Avenida de
Ceuta acima, merecendo olhares reprovadores dos transeuntes. Não me lembro
muito bem do caminho até ao Casal. Nem me lembro muito bem do que se passou lá,
só me lembro do Miguel a gritar “Foge que o filho da puta vai-me…” um tiro
cortou-lhe a palavra e desatei a correr. Não queria saber o que estava ali, já
fazia um esforço suficiente para não cair enquanto corria Casal abaixo por
entre sombras estranhas e montes de lixo acumulado e os tropeções que dava em
mim mesmo e no calcetado irregular.
Só quando cheguei a Alcântara-Terra é que me apercebi que o
Miguel tinha o dinheiro todo. Na altura pensei “Cabrão de merda.”, mas o que me
saiu da boca foi um “Raios part’ó dealer”.” O meu pensamento era fugir. Se
antes queria fugir, agora mais motivos tinha. O medo impelia-me e nem me
lembrei que, no estado em que eu estava, se me quisessem já me tinham. Segui
para a Rocha Conde de Óbidos. Estavam a descarregar um barco. Fiquei ali o que
restava da noite toda a olhá-los. Quando, a meio da madrugada acabaram,
aproveitei uma distracção e entrei à socapa no barco. Não queria ser um
clandestino e dirigi-me ao capitão. Não foi difícil de convencê-lo a deixar-me
seguir a bordo do barco. Não queria saber a minha história desde que eu
trabalhasse bem. Perguntei-lhe para onde ia e disse-me que tinha negócios a
tratar em Barcelona. Era longe, agradava-me!
2 comentários:
Faz anos que escrevi aqui no blog uma espécie de pós-prefácio ao álbum de Mão Morta, Mutantes S.21. Na altura era uma parte de um plano maior, que envolvia fazer um conjunto de textos inspirados nas músicas do álbum.
O texto para Lisboa, faixa de abertura e ponto de partida esteve a dormir vários anos. Nunca gostei dele, confesso. No entanto hoje li-o e gostei.
Como gostei aqui segue para ser comentado. Prometo, um dia, acabar a viagem.
Gosto sobretudo dos cenários criados. O entrar dentro de uma personagem e conseguir penetrar num mundo que ouvimos em relatos ou com o qual nos cruzámos eventualmente. Notam-se aqui laivos de um lado negro de Lisboa que, a existir ainda, é uma realidade camuflada, um degredo anestesiado com pilhas de lixo em aromas de alfazema ou rosa. Gostei!
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