domingo, maio 28, 2006

Contos do Exílio - O Regresso, parte V: O Confronto

A lua cheia iluminava as copas das árvores. Da aldeia dos Nómadas saía um triste cortejo. As tochas caminhavam silenciosas e com com passos pesados, no meio apenas uma figura não carregava nenhuma, segurando nas suas mãos apenas uma vara talhada com estranhos caracteres. A seu lado, segurando duas das tochas maiores, caminhavam duas figuras um pouco mais altas, cada uma com um grande vara bifurcada, nas quais se apoiavam a cada passo. Iam avançando decididos para o interior da floresta, em resposta ao desafio que havia sido lançado à Vidente. Quando o primeiro dos Nómadas entrou na floresta levantou-se uma enorme ventania e todos se apressaram para dentro do mar verde. Um pouco mais longe o Exilado ordenava que se acendesse a Clareira e dizia à Aprendiza que "A Vidente não vem sozinha.". Quando a lua se encontrava no seu ponto mais alto o cortejo dos Nómadas entrou na Primeira Clareira. À sua espera dezenas de Caminhantes, cada um segurando a sua vara e uma tocha. A Vidente olhava-os um a um e, quando confrontados com o seu olhar, eles respondiam em pose de desafio. À sua direita a Discípula apenas olhava para o Exilado. Sentia-se ainda humilhada com o resultado do encontro dois dias antes e pretendia desforrar-se. No lado oposto o Impulsivo parecia calmo e aceitava que havia feito por merecer estar ali e naquela posição. Havia já algum tempo que discordava da formo como a Vidente conduzia os destinos da tribo e achava que todo o assunto devia ser resolvido entre ela e o Exilado. A fechar o cortejo vinham o Obreiro e o Passivo, desarmados, destinados apenas a observarem.
-Porque não os deixaste na aldeia? Tens necessidade de os arrastares contigo?
-São o meu povo, seguem-me!
-Vejo que uns é que são seguidos por ti e não te seguem. Porque não os deixas partir? Não foi já derramado sangue inocente que chegue por tua causa?
-O sangue dela não era inocente. - rugiu a Vidente.
-Quer o sangue dela, quer o dos que a seguiram. Todos inocentes. O sangue do Músico, o sangue do Novo e de todos os seus irmãos. Tudo por causa de um capricho teu... Olha bem para ti. Onde estão os que te seguiam? Nem todos os que te seguem acreditam na tua causa, se assim não fosse, porque deixariam as varas na aldeia?
-Falas do que não sabes! Sabes o que te contaram bocas envenenadas... - ele interrompeu-a.
-Cala-te! Se me vieste aqui para me envenenares o espírito com conversa cala-te já!
-Oh! Não te conhecia essa faceta sensível. Mas olha, não te vejo com nenhuma das tuas varas. A cerimonial está longe demais para a ires buscar antes que eu a reclame como minha e a de combate já se deve ter perdido.
-Erras em ambas as presunções. Vejo nos teus olhos e percebo-o na tua voz: estás a desafiar-me, mas para o teu desafio não tenho resposta. Tenta-me. Já sei que viste a vara pendurada nessa árvore, por cima de ti. Tenta alcançá-la.
-Impulsivo: dá-ma!
Sem hesitar o antigo Caminhante saltou para alcançar a vara. No entanto, quando se encontrava quase a agarrá-la, alguém o atingiu nas pernas, desequilibrando-o e fazendo-o cair de costas no chão rugoso da floresta. No instante seguinte, várias luzes começaram a acender-se nas copas das árvores, revelando muitos dos antigos Caminhantes, os que se pensavam longe da aldeia, que ali se encontravam.
-Constou-me que perdeste o apoio da verdadeira chama dos Caminhantes. Ah! E se consegues ver bem, consegues ver que ela não está apagada.
-Impulsivo: ele! - ordenou a Vidente. Sem lhe dar tempo de reagir , a Aprendiza saltou para o chão e atingiu-o violentamente nas pernas, partindo-lhas e saíu a correr para o lado direito do Exilado. A Vidente estupefacta não reagia. A Discípula olhava-o agora com raiva redobrada, mas aquele golpe havia-lhe quebrado a confiança. No chão, o Impulsivo contorcia-se de dores. Nunca soubera suportar a dor e a dor das duas pernas partidas juntava-se ao choque e ele não passava de um aglomerado de urros de dor e lágrimas. O resto da tribo dos Nómadas começava a recuar para fora da Clareira.
-Deixa-os partir. - ordenou o Exilado - Isto é entre tu e eu, eles são inocentes, a maioria nem me conhece. És tão egoísta que os arrastas contigo para o fim?
No instante em que se calou a Discípula carregou para ele. Um caminhante que se pôs à sua frente foi atingido na cabeça, um outro no lado, ficando ambos mortos no chão. A Discípula avançava para ele, com a intenção de o atingir no lado, mas ele esquivou-se da mesma forma que já havia feito, ficando virado de frente para as costas dela. Ao mesmo tempo a Aprendiza tentou atingir-lhe uma das mãos. A Discípula havia sido no entanto bem treinada e esquivou o golpe da sua adversária e contra-atacou, atingindo-a no braço, quebrando-o e preparava-se para a atingir na cabeça quando uma das suas mãos pareceu rebentar. Imediatamente perdeu controle da vara e largou-a. Um corvo debicava-lhe a mão enquanto outro voava em direcção ao Exilado, largando uma vara estreita e alta, toda ela lisa e escura. Assim que o Exilado empunhou a sua vara de combate ambos os corvos se dirigiram ao alto de uma das árvores.
-Vejo que continuas com apetência para os mais fracos Discípula. Anda cá e bate-te com alguém à tua altura... - os olhos dele já não eram olhos humanos, pareciam negros como a noite, como se por dentro todo ele fosse uma sombra escura. Nessa escuridão parecia brilhar uma fúria assassina.
-Não. Tu... Vais pagar por tudo! - pegou na vara dela e tentou defender-se, mas ele havia crescido muito para além da capacidade dela. O primeiro golpe dele desfez-lhe a vara em duas. Este golpe gelou o sangue da Discípula. Aquelas varas haviam sido envelhecidas pelo fogo e conseguiam aguentar vários golpes. Aquele único golpe partiu-lhe a vara e a confiança, a partir daqui só lhe restava um destino. Ele no entanto não parou apenas com um golpe. Revelando um sadismo que ninguém lhe conhecia, desferiu imediatamente um segundo golpe, o qual partiu o braço da mão ainda boa, e um terceiro golpe na bacia, o que lhe imobilizou uma das pernas, para em resposta lhe partir a outra. A Discípula só conseguia urrar de dor e as lágrimas era um rio na sua face. A Vidente gritava por piedade e avançava já em direcção a ele quando o Passivo e o Obreiro a agarraram e obrigaram a assistir ao massacre.
Com a Discípula estendida no chão, ele atingiu-a repetidamente nas pernas, até as pernas delas não passarem de membros flácidos.
-Pareceu-me que perfuraste um pulmão um Caminhante, durante a tua corrida. - e atingiu-a violentamente num lado. Para ela a pancada significou imediata dificuldade em respirar e uma dor aguda. - Já agora aproveito e furo-te os dois. - Uma pancada no outro lado, a sensação de falta de ar. Por esta altura a Discípula já não gritava, faltava-lhe o ar e limitava-se a soluçar assustada. Estava no limite da consciência, o desmaio e o negro que se lhe seguia eram iminentes. - E também me parece que rachaste uma cabeça! - Deu-lhe uma pancada na cabeça, mas não tão violenta que, ela perdesse os sentidos. Foi assim, ainda na posse de algum grau de consciência que ela sentiu a vara dele perfurar-lhe o peito e parar-lhe o coração. - Adeus. - disse ele, com o ar mais impávido e sereno.

1 comentário:

R.B. NorTør disse...

E eis que chegamos ao penúltimo post da enorme saga. O senhor Ortografista (aka O Velho, aka O Ped... deixem la isso) ja sabe onde pode fazer as quexinhas (e veja lá se acaba os Contos do Virgílio)