- A idade do armário é possivelmente o período mais entrópico do esquentamento da cafeteira. A conquista dos limites emocionais e físicos, a descoberta da identidade, num conflito constante entre as duas fases. Para crescer é preciso gerir e regular a combustão para que não se entorne demasiada água e se apague o lume da vida prematuramente... Os limites parecem excentricidades aos olhos dos adultos mas eles são os mais genuínos! - respondeu Aurora enquanto ajudava a irmã a desligar a cafeteira nervosa.
- Obrigado irmã por adoçares o meu intelecto com o chá da vida.
- De nada. Curiosidade... Estás na idade tardia do armário? A ver pela violência da fervedura deves ter regressado à puberdade... Quem te esquenta a cafeteira?
Um silêncio pautou enquanto oxidavam as folhas aromáticas. Lúcia ergueu os olhos na direção da irmã - uma lágrima solitária e salgada caía na sua chávena criando um turbilhão de amargura.
- Encontrei o fio condutor da minha vida à mesma velocidade que o perdi. Esta palpitação que alimenta o nervosismo da minha existência é único... Errei ao tê-lo deixado cair com uma leveza eléctrica!
- De quem falas tu? - perguntou Aurora completamente surpresa com a desinibição emocional da irmã.
- Falo da minha luz, do meu calor, do meu odor, do meu sabor... Que a minha estúpida razão deixou para trás. A combinação de metade da minha essência, ele, Pedro!
A chávena tornará-se agora um depósito saturado de testemunhos. Aurora, emparelha suas mãos nas da irmã e com ternura e sabedoria, tranquiliza-a.
- Nem tudo está perdido. Ficaste com algum contacto?
- Não! Saiu abruptamente.
- Assim é mais difícil mas... - o toque do telefone, electric eye, de Judas Priest, mais uma das partidas de Marco, interrompe o raciocínio de Aurora - é o teu sobrinho, o que terá feito para ligar a esta hora?
"Sim filho?! Que se passa? Encontraste quem? Hospital? A tua tia está aqui... Como disseste que ele se chamava? Está em que hospital? São José... mas está bem? Achas que foram eles? Calma, vá até logo filho. Txau!"
Lúcia petrificou o seu olhar no horizonte do corredor enquanto Aurora lhe batia na face.
- Lu, vá! Não entres em choque, explico já o que acabaste de ouvir - nisto Lúcia regressa à realidade fixando o olhar no leito ternurento e sábio de sua irmã - Marco encontrou um rapaz em mau estado, tinha sido espancado numa esplanada e deixou-o no hospital São José. Aparentemente ele falou numa Lúcia e o teu sobrinho achou que fosses tu... Mas acho que me oculta algo.
- Não quero acreditar na coincidência... Mas e quem eram os eles? Ele adiantou mais alguma coisa sobre o seu estado de saúde?
- Sabe que está vivo porque o entregou assim e deixou-o na porta das urgências. Eles... Bem... É uma longa historia! Vamos é saber do rapaz!
- Claro... Mas quero saber tudo, não quero mais segredos!
Rapidamente estavam na rua, desgovernadas na procura do amarelinho de luz verde... Tardava mas lá se aproximou um Mercedes 220 CDI nº 1989 de setembro de 2000.
- Bom dia senhor taxista, hospital de São José por favor!
- Bom dia meninas, com certeza, ele precisa de vocês!
As irmãs, arrepiadas, seguiram a viagem caladas como a cal.
- Chegámos!
- Quanto foi a corrida? - solta Lúcia.
- Nada menina! Fiquem em saúde.
- Mas... - Aurora acotovelou a irmã - muito obrigado! - e saíram do táxi à porta das urgências.
5 comentários:
Hoje é noite de lua cheia na P.E.N.A. ! :)
Este texto andou no prelo uns bons meses e, finalmente, viu a luz.
Muitas pistas, muitos caminhos para seguir...hum...Love it!
Estou em pulgas para ver onde isto vai parar!
Muito bom! Mesmo!
A ligação destas peças todas é fascinante. A história principal (ou serão histórias?) ramifica ad infinitum e volta a juntar-se, e faz sempre sentido, e quando não faz alguém agarra numa ponta que a faz voltar a um eixo.
Vocês já repararam que um leitor, confrontado com um discorrer linear dos diferentes pedaços que se foram criando, provavelmente teria em mãos daqueles livros imprevisíveis onde o final seria tão difícil de adivinhar, ao contrário de alguns romances mais sensaborões que vão surgindo nos escaparates das livrarias e hipermercados? (xi... que agora houve aqui alguma "acidez").
Gostei do texto claro. Chas é um autor cada vez mais refinado. É um verdadeiro vinho de garrafeira... Quando jovem, cheio de potencial mas não muito consumível. Ao "envelhecer" (salvo seja) torna-se uma pérola. E contudo a irreverência da sua "juventude" ainda se nota, mas com uma subtileza que todo o processo lhe conferiu (complementar esta insana metáfora com as primeiras linhas do texto).
:)
Obrigado a todos.
Nesta altura tenho os pés molhados de tanta baba... deixem ir ali sacar das galochas e das meias suplentes. (sim tenho um par de meias no trabalho)
Um aparte, ontem aconteceu algo muito interessante. Decidi pegar no texto com intuito de o terminar, estava parado no tempo desde início de Maio - a vida profissional atropela as minhas necessidades de escrita. E depois de terminado leio "Destinos Traçados" e fico wow, nem combinado sairia tão bem.
Obrigado a todos por continuarem a depositar energias positivas este espaço literário cada vez mais promissor.
uau! fantastico! ja esta ha mesmo muito tempo para vir ler o que estava a acontecer na prosa em grupo! (confesso que não tinha visto nada desde de que publiquei o meu ultimo texto)....
Primeira frase e a minha cabeça log: "Chas"... Depois adorei tudo. genial, com humor ritmo e historia. (ou quer dizer com uns mini-detalhes de historia que so nos deixam mais intrigados)
e todas as imagens... lindo!
P.S.: peço desculpa aos outros autores, mas hoje fico por aqui! entretanto vou tentar lendo os outros
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