quarta-feira, outubro 31, 2007

A vida em directo

Toca o despertador, o começo de um novo dia, deixo-me ficar na cama e desfruto destes últimos letárgicos momentos. Depois de me levantar a custo, arranjo-me e tomo o pequeno-almoço enquanto ligo a televisão e vejo as últimas noticias. Mais um bombista suicida provocou 12 mortos num mercado em Bagdad. Não pude deixar de reparar na expressão de atrapalhação da pivot, não seria certamente pelo conteúdo da notícia em si que estaria naquele estado, afinal noticia seria não haver atentados suicidas no Iraque! Parecia que estava a presenciar algo fantástico e que lhe estava a afectar a concentração na apresentação do jornal da manhã. Deixei de me preocupar com as atrapalhações da pivot e saí de casa em direcção ao emprego. Meti-me no autocarro e ao entrar reparei que toda a gente olhava para mim como se fosse algum criminoso com um cartaz em cada esquina a dizer procura-se, reparei que naquele preciso instante toda a gente puxava dos seus telemóveis e escrevia mensagens freneticamente. O que é que se estava a passar? Seria pura coincidência toda a gente olhar para mim com olhar inquisidor e começar a escrever uma mensagem nesse mesmo instante? Seria eu a cobaia numa experiência underground? Saí do autocarro, no preciso instante em que tinha começado a chover, apressei o passo e a chuva aumentou a intensidade até que tive de encontrar refúgio debaixo de um telheiro, parou imediatamente de chover, já não sabia o que havia de fazer, por mais que tentasse fugir ao destino ele perseguia-me sem dó nem piedade tal como se fosse um programa com capacidade para seguir e antecipar todos os meus passos ou melhor, os meus pensamentos! Este meu pensamento foi interrompido pela imagem de um vendedor de chapéus de chuva, veio mesmo a calhar, paguei e prossegui caminho até chegar a um cruzamento onde estava um grupo de pessoas que à medida que me ia aproximando ia reconhecendo como pessoas famosas, uns do mundo da televisão, outros do mundo da escrita, outros famosos eram por aparecer nas festas do jet set, todos em amena cavaqueira, que estariam todos ali a fazer? Passei por eles, fez-se silêncio, levantei os olhos para ver o que se passava naquele grupo e vi que todos olhavam curiosamente para mim, passei por eles no mesmo passo sem me mostrar afectado e segui caminho até chegar ao largo onde estava o escritório onde trabalhava, estava mesmo em frente um placar publicitário com um homem representado, era incrivelmente semelhante comigo, em baixo aparecia escrito o slogan “Seja o próximo a ficar nas bocas do mundo”, as semelhanças com a realidade eram assustadoras. Entrei no escritório, cumprimentei a dona Palmira da recepção com o “bom dia” habitual, não me respondeu, ainda assim manteve fixa em mim toda a atenção como se estivesse a seguir a novela da noite.

- Passa-se alguma coisa dona Palmira parece que viu um fantasma!

- Não é nada Pedro, não consegui pregar olho toda a noite foi isso.

A sua resposta deixou-me ainda mais espantado, como é que sabia o meu nome? Nunca me tinha apresentado a ela, pelo menos que me lembrasse. Continuei o meu caminho pelo corredor em frente e enquanto não chegava ao escritório propriamente dito ia-me perguntando e preocupando com o que se iria passar a seguir, como é que seria o comportamento dos meus colegas? Não demorou muito a saber a resposta. Estavam uns sentados em frente aos computadores outros de pé a falar, parou tudo quando cheguei como se fosse o patrão a anunciar novos despedimentos na companhia, segui com passo estugado em direcção à minha secretária enquanto ouvia cochichos e risinhos. Estava a ser uma manhã maldita, não via a hora de terminar o dia. Sentei-me em frente ao computador e comecei por consultar o meu e-mail, tinha a caixa cheia de junk mail, olhei rapidamente para os assuntos de cada mensagem: Be the star of your company, Be famous from one day to another! Tomorrow shall i bring the umbrella? Esta última havia sido enviada à 6 minutos atrás, era impressionante como estes assuntos se assemelhavam ao que me havia acontecido esta manhã, apaguei todo aquele lixo e tentei concentrar-me no meu trabalho. Ainda assim era difícil, sentia-me o centro das atenções. Resolvi retardar propositadamente a hora de almoço para as 13h a fim de evitar uma multidão de colegas todos curiosos com a minha pessoa. Seria imaginação minha ou aquilo que eu pensava estar a acontecer estava a acontecer na realidade? Como de há um tempo para cá não conseguia dormir, esta impressão podia ser do cansaço, mas tantas coincidências juntas era de desconfiar. Ás 18 era hora de abandonar o posto de trabalho, resolvi ficar mais um tempo de forma a deixar passar a hora de ponta de forma a poder avaliar melhor a situação. Saí uma hora mais tarde, mais uma vez começou a chover torrencialmente no preciso momento em que pus um pé fora do edifício, mas desta vez estava prevenido com um guarda-chuva. Percorri em sentido contrario o caminho que havia feito de manhã, mas desta vez, para além da abundante chuva, trovejava, por sinal muito perto do local onde estava, o ruído era ensurdecedor. De repente dei-me conta de um raio cair mesmo no prédio em frente, que dia aquele! Cheguei à paragem de autocarro e esperei até que chegou o autocarro que me levaria de volta a casa. Entrei, parou imediatamente de chover, deparei-me com um autocarro sem nenhum lugar sentado ainda assim não se podia considerar cheio, todos pararam o que estavam a fazer para me olhar curiosamente, no fundo só se ouvia:

- Só espero que agora não nos caia um raio em cima!

De repente vi uma pessoa a levantar-se e a acenar na minha direcção, como se eu fosse uma câmara de televisão, e ela estivesse a mandar cumprimentos para a família lá em casa, olhei para trás para ver se estava alguém que pudesse justificar aquele comportamento, nada, estava tudo sentado a olhar, eu já enervado com todos aqueles comentários e atitudes perguntei:

- É alguma coisa comigo?

- E se fosse havia algum problema?

- Se me estivessem a acenar e eu não conhecesse essa pessoa para nada é obvio que havia algum problema.

O indivíduo de repente puxa de uma navalha e tenta-me atingir.

- Agora vais ver o que é um problema

Desferiu diversos golpes, e eu, a custo e com a ajuda dos solavancos do autocarro, conseguia-me esquivar. Na altura em que ele tentava desferir outro golpe consegui enfiar-lhe um soco na cara, acabou por tombar, altura em que o autocarro parou e aproveitei para fugir. Claro está que a chuva voltou em força enquanto eu corria com todas as forças que tinha, até que cheguei a casa, imediatamente parou de chover. Sentia um rubor na face esquerda, pus a mão na cara e vi que estava a sangrar, aquele filho da %&#) tinha-me atingido.

Depois de fazer o tratamento da ferida e ter trocado de roupa, liguei a televisão, estava a dar o jornal da noite, o pivot que apresentava o jornal virou-se para mim e interrompeu por instantes o que estava a dizer, tentou retomar o raciocínio mas era obvio que estava perturbado. Eu já enervado com tudo aquilo grito em voz alta:

- Mas que raio se passa aqui!!!? Não têm uma vida própria, porque carga de água me estão a observar, isto é alguma experiência e eu sou a cobaia, vão-se mas é f#$&!

O pivot tinha enrubescido era notório que tinha ouvido tudo o que tinha acabado de lhe dizer. Até que se decidiu

- Caros telespectadores, vamos ter que interromper este telejornal devido a problemas técnicos esperamos voltar com a maior brevidade possível.

Resolvi desligar o televisor, jantei e fui-me deitar na esperança de na manhã seguinte não ter passado tudo de um pesadelo.

Na manhã seguinte acordei em sobressalto, estava curioso por saber se tudo aquilo era mesmo real ou não. Levantei-me num ápice e liguei a televisão. A pivot estava concentrada a apresentar as notícias, não modificou a expressão nem se atrapalhou a falar, parecia ter voltado tudo à normalidade. Este foi um primeiro sinal que as coisas estavam normais. Faltava ainda perceber se as pessoas e o tempo também estavam normais. Lavei-me, vesti-me e comi apressadamente e fui para a rua, estava um tempo magnífico, nem parecia que tinha havido uma tempestade na véspera. Apanhei o autocarro, as pessoas no seu interior pareciam indiferentes à minha pessoa, senti-me profundamente feliz, era mais uma pessoa anónima, sentei-me e olhei pela janela e apreciei a paisagem como se fosse a primeira vez que a estivesse a ver. Desci do autocarro e caminhei confiante até ao meu emprego. Pelo caminho fui abordado por uma freira com um recipiente para moedas ao pescoço.

- Jovem, veja lá se pode dar uma ajudinha para as missões.

- Deixe lá ver o que é que se pode arranjar, irmã.

Peguei numa moeda de 2 euros e introduzi-a no recipiente

- Obrigado jovem, a sua ajuda foi preciosa…Deus faz de nós seus instrumentos, os seus desígnios são insondáveis e todos têm o seu papel a desempenhar, como se todos fossemos actores num grande filme em que todos os nossos actos têm consequências até mesmo no tempo que vai fazer amanhã!

- Irmã nem sabe como, mas compreendo-a melhor do que imagina…

Esbocei um sorriso mesmo antes de virar costas e enfrentar mais um dia de trabalho.

quarta-feira, outubro 24, 2007

Continuando pela estrada

A noite está escura. As nuvens tapando o céu e ameaçando chover por entre as árvores negras, como sombras dançando na escuridão. O assento da mota molhado não me incomoda enquanto o levanto para pegar a arma que assenta tão bem na minha mão. A bala fria entra facilmente e deixo a pistola no meu colo enquanto ligo minha companhia.

O ronronar forte do motor desperta-me à medida que o frio desaparece do motor, só as balas continuam frias no bolso do meu casaco enquanto coloco a pistola no seu coldre de cabedal, facilmente tão acessível. As mãos altas no guiador da minha companhia, sentindo as minhas mãos nuas nos punhos, o cabelo que começa a ficar ralo a abanar à medida que me movo.


...A cabana que deixo para trás mergulhada em sangue nunca mais será a mesma, as almas que lá ficaram sempre presas num suplicio que, se depender de mim, nunca acabará. O cheiro da morte ficará em mim como a memória de quem te matou...


Os quilómetros que ficam à minha frente estão marcados pelo sangue que ainda não derramei e iluminados pelas balas que ainda não disparei. O alcatrão que passo marcado pelo pneu molhado e pelas recordações que guardo. A estrada é apenas minha e da minha companhia.


A estrada é um rio negro marcada apenas pelos traços que o pneu pisa. A canção que me acompanha afasta as memórias, uma canção que canto apenas para espantar os sonhos. O tempo que passei no deserto do mundo apenas contribuiu para alimentar a raiva que não deixo que se apodere. A caminho de mais uma cabana para te vingar.


O blusão negro que me envolve confunde-me com a escuridão que abraço, as calças do fato que me vestem são as do fato com que me enterrarão, na minha mão brilha o anel cujos sonhos nunca mais me apanharão...

sexta-feira, outubro 19, 2007

Realidades... opostas

Apertou o nó da gravata e abriu a porta do quarto... Desceu ao primeiro piso do hotel e sentou-se em frente à farta mesa do pequeno almoço. Que dia aquele!

Penteou-se e saiu da casa de banho... Percorreu o corredor escuro da casa e na cozinha preparou meio papo seco com manteiga. Mais um dia aquele...

Cumprimentou o motorista e entrou na viatura nova em direcção à reunião. Abriu a pasta e releu o discurso novamente.

Despediu-se da Dona Laurentina e entrou na carreira em direcção à cidade. Olhou para a mica e certificou-se que tinha trazido os papéis.

Entrou no edíficio à hora marcada e tentou permancer indiferente aos flashes que se desprendiam das máquinas fotográficas. Dirigiu-se ao púlpito indicado por um assessor... fez uma pequena pausa e começou a falar.

Entrou no centro de emprego dois minutos atrasado e fez-se indiferente perante a antipatia do empregado. Subiu ao sexto andar como indicado por ele. Abriu a porta e aguardou que o homem falasse.

- Caros presentes. Este novo empreendimento desta conhecida multinacional, revela-se de extrema importância como todos sabem... Daqui resultarão cerca de mil novos postos de trabalho e permitirá dar um novo fôlego neste importante sector empresarial.

- Senhor Sousa. Este plano que o centro lhe sugeriu, parece não ter surtido efeito... Daqui não resultou nada que alterasse a sua situação e precisamos de tentar mudar algo para o intruduzir novamente no mundo do trabalho.

Dirigiu-se para a sala reservada para o cocktail, foi-lhe entregue em mao uma garrafa de champanhe... com um sorriso para os presentes, soltou a rolha de forma ruidosa e pediu um copo.

Enquanto o funcionário se dirigiu a uma sala contígua com papelada diversa, reparou na janela que se encontrava á frente... com um ar resoluto que ninguém podia ver, abriu-a em silêncio e saltou para o parapeito.

Três breves segundos... O tempo que o líquido demorou a cair no copo, perante o som das palmas ruidosas na sala.

Três angustiantes segundos... O tempo que o corpo demorou a cair na rua, perante o silêncio daquela manhã calma.



Boa noite este é o telejornal! O Primeiro Ministro inaugurou hoje a nova filial da empresa Kronix em Lisboa.

Boa noite eu sou Comandante Gomes... Dona Laurentina lamento informar que o seu filho morreu hoje em Castelo Branco...