sexta-feira, julho 30, 2004

Contos do Exílio - O Acordar

Acordei! Pelo menos assim o creio...
Alguns sentidos pelo menos tenho a certeza que acordaram em definitivo! Ouço um gotejar próximo e ao mesmo tempo distante. Ouço-o como se estivesse aqui, ao meu lado, em enorme lago com árvores verdejantes em seu redor, donde pinga a água para a grande massa de água. Sinto-o tão próximo que estranho o tempo que me arrasto até essa pequena poça de água fria e de sabor barrento.
Abro os olhos e vejo ainda a escuridão! Olho em meu redor mas tudo o que vejo é breu, apenas esse manto escuro me devolve o olhar frio... Levo as mãos à vista e sinto as minhas unhas a arranharem-me as pálpebras. Estranho! Seria capaz de assegurar que parecem ter crescido apenas para a frente e durante meses, como se o meu sono tivesse sido um sono prolongado... Procuro pôr-me de pé, mas tal tarefa revela-se impossível, doem-me em demasia as pernas adormecidas e torpes. Tento sentir em meu redor o local onde estou. Chão macio, árvores espalhadas em redor, uma brisa que me bate suavemente no rosto e um calor na face esuqerda que atribuo ao Sol.
Volto a tentar abrir os olhos, mas desta vez a luz magoa-me profundamente e rapidamente os fecho! Não estou cego, mas tenho a noçao que novas tentativas rapidamente conduzirão a esse estado. Tento abrir os olhos progressivamente, mas nem assim... O tempo vai passando e vou-me esforçando. Uma eternidade depois, quando o sol me bate no rosto já de frente consigo finalmente abrir os olhos, contemplando esse espectáculo de infinita beleza: o pôr-do-sol.
Tão belo, tão simples... Parece que é um acontecimento novo para mim, algo que nunca tinha presenciado, algo que... me dá um novo alento, algo que me grita cá dentro que há todo um mundo para eu descobrir!
Então alcança-me uma outra sensação: a fome! Uma sensação violenta que me assalta de rompante, fazendo-me agarrar ao estômago e curvar-me de dor... Com esse movimento sou obrigado a olhar os meu braços sujos de terra, olho as minhas mãos e vejo unhas parecidas com garras, longas e ligeiramente curvadas nas extremidades, aguçadas e afiadas como que para rasgar, unhas que cresceram e não se entranharam na carne, unhas como se pertencessem a um animal! A Fome! Tenho de a saciar... Tenho de encontrar alimentos... Tenho...
Um monte de animais mortos repousa no local onde despertei os sentidos, uns metros mais atrás de mim. Um monte de coelhos e pequenas aves, todos empilhados como se ali houvessem sido deixados para me alimentar.
Procuro colocar-me de pé, penso que já o consigo, mas não passa de uma ilusão. Com a violência com que a Fome me assaltou mal me consigo mexer e tudo o que faço é contorcer-me em direcção ao alimento. Quando enfim chego junto deles não penso e lanço-me com avidez à comida ali colocada, deglutindo sofregamente todas aquelas carnes, cuspindo penas e pêlos. No final, sentido-me já mais forte consigo enfim colocar-me de pé.
Vejo, detrás do Monte um enorme clarão. É certamente o Fogo da Despedida, que marca o final do Acampamento de Verão, a Tribo está de partida do Grande Vale e é então que me assola a ânsia de partir para junto deles. A memória! A memória de tudo assola-me de novo, as imagens da violência e da expulsão, as palavras proferidas no julgamento e as traições ocorridas. Sinto-me partir por dentro até que o último raio de Sol seca as lágrimas que me começam a escorrer pela cara.
A memória é dolorosa mas esse raio de Sol ilumina no meu espírito outra memória. A do Concelho dos Anciãos, a do nome de Exilado e do futuro que me está reservado. É agora que o nome de Exilado faz sentido. É agora que começa o meu futuro, que a ninguém revelei e que só agora percebo. Sou pois agora o Exilado. Estou, finalmente, acordado.

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