sexta-feira, novembro 07, 2003

Faster

O mundo deslizava por baixo dos seus pés como uma passadeira rolante artisticamente trabalhada. Mas os olhos daquele homem permaneciam abstraídos do que o rodeava. Naquele momento, além de um ou outro obstáculo no seu caminho, a sua mente não deixava de se contorcer em volta do extraordinário conjunto de circunstâncias que o trouxeram àquela situação.
O homem corria – dir-se-ia que voava – há muito tempo. Desde que aquele pesadelo começara que ele não tinha parado de correr – ou voar, ou deslizar – por aquela sucessão de fotogramas a que chamamos realidade.
Naquele momento o homem fez um esforço para se lembrar... Quando fora? Ah, sim, fora num Verão... Naquela maldita Meia Maratona...

Gabava-se de ser um corredor mediano, um "atleta part-time", um homem de ciência, que conjugava a custo a corrida com o horário de trabalho no Acelerador Cyclotron II do Departamento de Física Quântica João Magueijo, na FCT-UNL.
O projecto megalómano demorara 20 anos a ser construído – fora as décadas de concepção – mas em 2063 era já uma realidade. Com um diâmetro de 12 km, o enorme acelerador de partículas englobava no seu perímetro Almada e Caparica. Tal era a escala necessária a um empreendimento daquela natureza. O consórcio multinacional decidira construir o mega-acelerador em Portugal, prestando assim homenagem ao famoso cientista que tivera a coragem de questionar um dogma com pouco mais de cem anos. As implicações práticas da teoria supra-fotónica eram incríveis; e tentar, sequer, aflorá-las exigia infra-estruturas muito específicas. Enormes. E caras, muito caras. Tão caras que o projecto fora adiado inúmeras vezes, e inúmeras vezes salvo por injecções de capital do "mecenato" de empresas interessadas. Passada à prática, a teoria supra-fotónica revelar-se-ia muito frutuosa.
A filantropia paga-se sempre.

Ele sempre se sentira interessado pelo infinito, em todos os sentidos. O mínimo e o máximo. Do sub-atómico ao cosmológico. E foi sem surpresa que os seus pais o viram enveredar pelo curso de Física Aplicada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, no Monte da Caparica. Uma decisão reforçada pelo anúncio de que as instalações do futuro Cyclotron II seriam ali erigidas.
Trabalhar no acelerador seria o culminar de um velho sonho: o de alcançar um fotão desgarrado – qual pirilampo vagabundo numa constelação de colisões – e ultrapassá-lo!
Ao fim de dez anos de estágios e doutoramentos, os cérebros do Comité Científico do consórcio consideraram-no apto a integrar a equipa de trabalho do acelerador. Ele recebera a notícia com uma euforia desmedida, um êxtase visceral a que não sucumbira por pouco. Nessa noite a sua mulher estranhara o ímpeto apaixonado, a avidez com que ele desfrutara do contacto dos seus corpos. Cansada, acabaria por compreender que aquele projecto traria um vigor inusitado ao seu marido, que sempre desdenhara como fraco amante e companheiro distraído.



Os anos passaram e os seus filhos testemunharam o erguer das gigantescas gruas e o rugido das toupeiras mecânicas, enquanto escavavam quilómetro após quilómetro de leito rochoso, quais Leviathans da nova era. A inauguração do gigantesco complexo fora celebrada, como não podia deixar de ser, com grande pompa e circunstância, a que não faltaram sequer os grandes líderes mundiais de então. O entusiasmado e envelhecido cientista, esse, mal ligara ao remoinho multicolor de estrelas mediáticas e comunicação social. Só tinha olhos para o imenso sistema de painéis de controlo que estaria a supervisionar, entre trinta outros colegas, na semana seguinte.

Eram estas as recordações que passavam à velocidade de um relâmpago pela mente do corredor. Este já se deixara de definir como um corredor. Sentia-se como uma automotora desgovernada, um cometa extraviado da sua órbita regular para uma trajectória ruinosa. Mas mais aflitivo do que aquela correria sem rumo, mais aflitivo do que não conseguir parar, era aquela sensação. Sentia-a no estômago, aquela maldita aceleração. Desde que aquilo começara que não tinha deixado de aumentar de velocidade. Imperceptível a início, aquela força invisível puxava-o para diante com uma intensidade perversa, quase sádica. O pobre homem tinha deixado de calcular a sua velocidade quando a sua visão do mundo se começara a desvanecer, as cores e as figuras distorcidas como testemunhos de uma passagem alucinante por um mundo a que já não pertencia.

Voltou a esforçar a mente. Tinha de puxar pela cabeça. "Pensa, homem, pensa!" E a recordação voltou. A recordação daquela fatídica noite em que, pela primeira vez na História da Ciência, se registou o movimento de uma partícula a uma velocidade superior à da luz. Os instrumentos zumbiam, reflexos baços do cientista maravilhado. Freneticamente, teclou instruções de modo a calcular a velocidade exacta. Segundos depois os monitores debitaram o valor mágico: 1,37c!
Nesse instante duas coisas sucederam: uma falha nos geradores percorreu as instalações, cujas luzes cintilaram, intermitentes; o cientista, sozinho na sala de controlo, reparou na falha ao mesmo tempo que um brilho fantasmagórico se emanava da maquinaria circundante. Estranhava a falha, mas não tanto como aquela névoa tremeluzente que se difundia através das paredes. Algo o intrigava naquele comportamento...

Foi então que o terror das evidências tomou conta de si. A névoa estava a concentrar-se num só ponto daquela sala, e esse ponto era ele próprio. Esbracejou, desesperado, mas era tarde demais. Encontrava-se rodeado por uma aura gélida, cintilante, que nada tinha de reconfortante ou maravilhoso.
Envolvia-o o próprio hálito da Morte.

A única coisa de que se lembrava no dia seguinte era de que o acelerador tinha sofrido uma avaria, devido a uma falha momentânea nos geradores de fabrico soviético. Pensou com desdém no enorme Mausoléu de Chernobyl, e deu graças por ninguém se ter ferido. Ninguém, além dele próprio.
Porque ele sentia-o. Não o sabia descrever, mas não se sentia o mesmo desde aquela noite. Sentia-se fora de tempo, como... como um relógio ligeiramente adiantado? O mundo continuava igual mas... monótono. Diria mesmo lento.
Foi então que decidiu começar a correr. A mulher advertiu-o para o perigo de começar a fazer exercício físico numa idade daquelas, ainda mais sem supervisão. Mas ele não sentia qualquer necessidade dum treinador. Julgava até que tinha nascido para aquilo. Começou por correr à volta do bairro. Depois, de casa para o trabalho. Os treinos sucediam-se a um ritmo e intensidade crescentes. Continuava a trabalhar no acelerador, revendo registos atrás de registos do espantoso percurso daquela partícula desgarrada. Os registos em si eram igualmente espantosos. Segundo estes, a partícula percorrera os 38 km do perímetro do Cyclotron 119.923,25 vezes, num total de 11 segundos antes de desaparecer completamente do alcance dos detectores. Sem mais nem menos.
Era um facto que o intrigava na altura, a par da estranheza da sua própria condição – com a diferença de que esta não podia ser medida. Uma partícula não se volatilizava assim, sem deixar rasto. A potência dos aparelhos permitia-lhes um grau de rastreio que não deveria deixar escapar a mínima perturbação electromagnética.

Fora para desanuviar a mente dos seus problemas que o físico se resolvera inscrever na 60ª Meia Maratona de Lisboa. Seria uma corrida leve, comparada com o treino a que se submetera nas semanas anteriores. Deveria ultrapassar os profissionais da modalidade com facilidade. Sorria para si mesmo enquanto pensava nas manchetes do dia seguinte: "Físico português vence Meia Maratona com 17 minutos de avanço do tricampeão queniano!". Era uma extravagância que podia conceder a si mesmo.

"Idiota! Deitaste tudo a perder..." pensou para si mesmo enquanto acelerava cada vez mais. Estava agora rodeado por um borrão indistinto, aquilo que anteriormente fora o seu mundo, o seu berço.
"Se não me tivesse armado em esperto..."

Recordou o momento em que se preparava para ultrapassar Essaniouwy, o expoente máximo do fundismo internacional.
Recordou o instante em que o corredor negro o olhou nos olhos, um olhar incrédulo. Um olhar de medo.
Recordou a voz embargada dos repórteres nas motorizadas, quando os ultrapassou.
Recordou o ruído ocasional dos condutores que se despistavam, incrédulos, quando o viam passar como uma flecha na auto-estrada.
Recordou o estampido ensurdecedor de Mach1.
E agora atravessava o mundo a uma velocidade imperceptível, de tão rápida, maldizendo a sua sorte.
Não saberia se alguma vez iria parar, ou se morreria antes disso. Estava completamente só e desamparado numa realidade que não cria sua.

Foi então que as trevas vieram.

E com elas o horror. O horror de ver um corpo que se desfazia para dar lugar a uma névoa enregelante e familiar.
O horror de saber que agora era mais um espectro condenado a vaguear para sempre no vazio.

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