segunda-feira, novembro 10, 2003

SANATÓRIO

Erguia-se escuro e sombrio no meio da floresta de pinheiros. Alguém ousara, bem para lá do portão principal, plantar uma palmeira na rotunda de entrada. Confesso que naquela tarde chuvosa o ânimo e os sonhos que levava na bagagem me impediam de notar em algo diferente, sentir o ambiente daquele local, a atmosfera nociva... A princípio tudo é tão belo, as árvores, os pássaros pela manhã, os relvados infindáveis, até a chuva incessante e o prateado firmamento tinham um ar rústico e agradável! Para lá chegar passávamos por um portão de ferro forjado e entrávamos numa imensa alameda de ciprestes. Imensos duzentos metros de via alcatroada ladeada de árvores verdes e viçosas, plantados bem no meio de um extenso relvado que ao fundo era encimado pelo enorme casarão, bem ao estilo senhorial, com os seus quatro andares e com um longo pavilhão central a unir as duas alas laterais.

Nunca, ao sentir os primeiros pingos de chuva a baterem-me na face, pensei que desejaria ardentemente sair dali rapidamente, abandonar aquele palacete.

À porta: ninguém para me receber, só um estranho aviso pintado por cima da porta: "Bem vindo a casa!" Mais tarde, tarde demais, percebi o porquê da afirmação, percebi porque chegava a casa: estava sozinho!Quer dizer, haviam o jardineiro, a cozinheira, as enfermeiras e a mulher da limpeza, mas... todos surdos e mudos, como se receassem ouvir-me ou falarem comigo. Levou muito tempo a aperceber-me da realidade, essa dura e árdua realidade e também do facto de estarmos todos dependentes de nós próprios.

Sinto que na realidade o tempo aqui não se mexe, está parado, é impossível andar para a frente. Vejo os dias passarem por mim, mas não guardo memória de quantos passaram. Percorro os corredores e vejo as celas que ninguém abandonará, nem que ninguém nunca abandonou. A Lua todas as noites é a mesma, pois quando a Lua não está cheia cobre-nos um manto rosa todas as noites. A cada dia sinto a loucura apoderar-se de mim, qua para aqui vim tratar de doentes imaginários, a loucura dos outros... Sinto-me a viajar para esse mundo e tento fugir-lhe. Começo a caminhar mas ao fim de alguns passos na alameda dos cipreste apodera-se de mim uma tontura e acordo invariavelmente no meu quarto. O tempo, esse ser imutável, habituou-me a tratar a alameda da entrada por a Alameda do Cemitério, pois é esse o ar que as árvores transmitem, o de um deprimente e longo cemitério, essas árvores que os antigos serem uma forma de comunicar com os mortos!

Vejo a loucura ao meu lado e a liberdade lá ao fundo e penso: porque fujo de uma que não me larga e não alcanço nunca aquela que procuro?! Penso e vem-me sempre à memória que não há aqui portas trancadas nem janelas com grades, não há nada que me possa marcar a mente, no entanto não fujo! NÃO FUJO!...

Adormeço mais uma noite e sonho com a minha dura e insana realidade, aprisionado nesta jaula de tijolo e verde, clamando e urrando de raiva com o lento passar dos dias!

O tempo ensinou-me a ter medo do que mora para lá dos longíquos muros! Percebo, agora, porque nunca se foram todos embora, percebo porque são mudos os que não têm palavras que exprimam a dor da alma e o terror que emana da alma do casarão, percebo porque são surdos os que temem ouvir algo que os leve a insurgirem-se contra a alma escura que todos os dias se ergue com a carruagem de Hélios. É o medo! Medo do ar que respiramos, medo de respirar a liberdade, medo do ar que me sussurra coisa aos ouvidos enquanto o vento assobia nas copas... Oiço vozes! Vozes por todo o lado! Ao ouvir essas vozes tenho a certeza confirmada que passei completamente para o outro lado: estou insano!

Hoje oiço-as a gritarem-me! Gritam à demesurada, uivam à lua cheia, bradam em triunfo que têm a minha cabeça nas suas mãos e que passarão agora à fase da violência.

Violência... Violência... Violência! Como a contrariar? Correndo? Então eu corro! Parando? Então eu paro! Usando as cordas? As cordas! Vou buscar as cordas é isso mesmo! Vou a correr, cordas nas mãos em direcção ao portão. A tontura afastou-se de mim e não a sinto desta feita, sinto isso sim o suor a escorrer-me pelas faces, os olhos a abrirem-se em terror, a língua a pender-me da boca. Chegado ao portão olho através dele e sinto-me a tremer... Não! Não são tremores, são autênticas convulsões aquilo que tenho, convulsões de medo. Oiço de novo as vozes na minha cabeça! Estão inquietas, amotinam-se dentro da minha cabeça, já penduram os mortos nos galhos mais altos...

-Deixem-no pendurado na árvore, "faz-lhe" bem! Não vêem como está a melhorara da sua loucura?
-Doutor, isto estava no bolso dele. Parece um bilhete...
-Que diz?
-"Sanatório: deixa-me em paz!"

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